Quando o assunto é infraestrutura, o Brasil tem uma coleção notável de vergonhas. O exemplo mais perceptível para a maioria da população é o das rodovias que são verdadeiras “rotas do queijo”, tantos os buracos; mas o modal ferroviário está em uma situação ainda mais deprimente. A malha total brasileira é de 31 mil quilômetros, extensão quase idêntica à de 100 anos atrás e equivalente à malha atual da França, cujo território tem o mesmo tamanho da Bahia. Os Estados Unidos, que têm área 11% maior que a do Brasil, têm dez vezes mais ferrovias. E mesmo o pouco que temos é subutilizado: uma auditoria do TCU, com dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), mostrou que 57% das estradas de ferro brasileiras estão inoperantes ou têm nível de tráfego abaixo de uma viagem de ida e volta por dia.
Boa parte desses trilhos em desuso – cerca de 11 mil quilômetros – está na mão de empresas que arremataram concessões no fim dos anos 90 do século passado, e o governo federal resolveu propor a essas empresas a devolução dos trechos mediante pagamento – na prática, uma indenização pelo fato de as concessionárias não terem feito o devido bom uso das ferrovias concedidas. Com base em um acordo já fechado com a Rumo e avalizado pelo TCU, o preço estimado por quilômetro de trilho devolvido ficaria entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões. Para as empresas, devolver os trilhos seria um bom negócio, já que seria muito mais barato pagar este valor que investir de R$ 15 milhões a R$ 20 milhões por quilômetro para construir uma ferrovia nova. Para o governo, os acordos representam a chance de levantar cerca de R$ 20 bilhões, montante significativo para quem está caçando todo e qualquer recurso disponível para fechar as contas.
Os bilhões que o governo pode arrecadar com a devolução dos trilhos em desuso terão de ser usados no planejamento da infraestrutura ferroviária, mas haverá espaço, neste planejamento, para uma participação robusta da iniciativa privada?
A grande questão não é o negócio em si, mas o que será feito desses trilhos depois que eles retornarem para as mãos do governo federal. O modal ferroviário precisa desesperadamente de ampliação e modernização; chamá-lo de “subaproveitado” ainda seria fazer uma avaliação generosa demais, tão ínfima é a malha atual diante de todo o potencial brasileiro para o transporte de pessoas e cargas sobre trilhos – neste último caso, com enorme potencial de redução de custos e aumento da competitividade. O governo anterior enfrentou este e outros gargalos de infraestrutura: além da “BR do Mar”, conseguiu emplacar o Marco Legal das Ferrovias em 2021, mas para isso precisou recorrer a uma manobra sagaz. Diante da demora do Congresso na apreciação de um projeto de lei sobre o tema, datado de 2018 e de autoria do tucano José Serra, Jair Bolsonaro publicou uma medida provisória, implementando um modelo que atraiu enorme interesse; no fim, o Congresso teve de se mexer para não levar a culpa pelo desperdício de investimentos caso a MP caducasse.
O PT de Lula, no entanto, se opôs a tudo isso. O relator do PLS 261/18 no Senado, Jean Paul Prates, propunha um modelo ligeiramente diferente, a ponto de várias empresas ameaçarem desistir dos investimentos prometidos caso aquela versão acabasse aprovada; o Congresso, felizmente, acabou emendando o texto para deixá-lo semelhante à medida provisória que tinha sido editada. Nos plenários do Senado e da Câmara, o PT votou contra o projeto. Os bilhões que o governo pode arrecadar com a devolução dos trilhos em desuso terão de ser usados no planejamento da infraestrutura ferroviária, mas haverá espaço, neste planejamento, para uma participação robusta da iniciativa privada, nos moldes do que o Marco Legal das Ferrovias prevê, ou veremos o retorno da ideologia estatizante que tem sua parte de responsabilidade no atraso do modal ferroviário no Brasil?
Assim como a enorme disparidade entre as rodovias sob administração estatal e as rodovias operadas por concessionárias revela a incapacidade do poder público em manter uma malha rodoviária decente, o Estado não tem recursos para assumir a urgente ampliação e modernização das ferrovias. A devolução planejada precisa ser seguida de contratos inteligentes e incentivos para que esses 11 mil quilômetros – um terço da malha ferroviária atual – sejam recuperados e bem utilizados; e o governo não pode colocar empecilhos à concretização dos investimentos planejados assim que o Marco Legal das Ferrovias passou a vigorar, e que podem reverter em mais 5 mil quilômetros de novos trilhos. O Brasil já tem uma enorme coleção de oportunidades perdidas de alavancar seu desenvolvimento; abandonar a possibilidade de uma revolução sobre trilhos, ainda que longe das dimensões necessárias, não é uma opção neste momento.