Quatro obscuras obras jurídicas acabam de inaugurar, no Brasil, a prática da queima de livros. O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, determinou a censura dos livros Curso Avançado de Biodireito, Teoria e Prática do Direito Penal, Curso Avançado de Direito do Consumidor e Manual de Prática Trabalhista, todos de autoria do advogado Luciano Dalvi; eles devem ser retirados de circulação, recolhidos em quaisquer livrarias ou bibliotecas onde sejam encontrados, e destruídos. A editora só poderá voltar a comercializá-los se forem devidamente editados. Por fim, o autor terá de pagar multa de R$ 150 mil. A decisão de Dino reverte julgamento da primeira instância e do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, que haviam negado todos os pedidos do Ministério Público após as obras terem sido descobertas por estudantes da Universidade Estadual de Londrina (PR).
Em primeiro lugar, é preciso admitir que os livros, publicados cerca de 15 anos atrás, realmente têm passagens tremendamente absurdas. Na obra sobre legislação trabalhista, o autor defende, por exemplo, a possibilidade de demissão por justa causa do que chama de “funcionários afeminados”; no livro sobre direito do consumidor, insinua que homossexuais deveriam ser proibidos de ter planos de saúde, bem como diz ser “sabido” que, no Brasil, as mulheres mais bonitas escolhem seus parceiros por interesse financeiro. Mulheres e a população LGBT têm todas as razões para se sentirem ofendidos ao ler esses trechos dos livros de Dalvi. No entanto, é forçoso também reconhecer que, apesar de toda a linguagem extremamente chula, das ilações e dos absurdos, o autor dispara sua metralhadora de sandices contra comportamentos e contra certas escolhas feitas pelas pessoas. E toda a melhor doutrina sobre liberdade de expressão afirma que tal crítica, por mais deselegante que seja, não pode ser alvo de censura sob pena de se estar criando um tabu – um perigo sobre o qual temos alertado desde o início do julgamento da ADO 26 no STF.
A queima (literal ou simbólica) de obras devido a trechos ou ideias que não constituem crime, por mais absurdos, insensatos ou chulos que sejam, é medida típica de ditaduras
Esta constatação reforça a convicção de que a forma escolhida por Flávio Dino para lidar com os absurdos escritos por Dalvi foi a mais incorreta possível. A começar pelo recurso (cada vez mais frequente) ao dito “discurso de ódio”, conceito que não está definido na legislação e cuja existência, no caso em tela, foi negada pela maioria dos desembargadores do TRF-4, que analisaram o caso e confirmaram a sentença de primeira instância. “Não obstante os aspectos estilísticos pouco elegantes, as obras em análise não têm potencial para disseminar o ódio social, sexista ou homofóbico”, escrevera o juiz que negou o pedido do MP, acrescentando ser “totalmente inadequado patrulhar a produção jurídica, histórica, científica ou artística de quem quer seja, pinçando aqui e ali trechos para reuni-los e daí extrair a caracterização de hipótese de plataforma de disseminação de ódio, ofensiva à dignidade humana”.
É curioso que Dino invoque, em sua decisão de censura, a jurisprudência do STF no chamado “caso Ellwanger”. Pouco mais de 20 anos atrás, o editor gaúcho Siegfried Ellwanger foi processado pela publicação de livros com escancarado teor neonazista e revisionista do Holocausto. Ellwanger foi condenado à prisão, confirmada por todas as demais instâncias. No entanto, mesmo tendo decidido que “escrever, editar, divulgar e comerciar livros ‘fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias’ contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade”, o STF não determinou a supressão, destruição ou censura dos livros de Ellwanger, como também não o haviam feito as instâncias inferiores.
Pessoas podem e devem ser responsabilizadas por discursos de fato preconceituosos e que atinjam a honra das pessoas – mas não por críticas a comportamentos, que são legítimas mesmo quando feitas em termos nada elegantes. A queima (literal ou simbólica) de obras devido a trechos ou ideias que não constituem crime, por mais absurdos, insensatos ou chulos que sejam, é medida típica de ditaduras, como se apressaram a lembrar comentaristas dos quais não se pode dizer que tenham qualquer tipo de simpatia pelas posições de Dalvi. Dino afirma que o autor abusa de sua liberdade de expressão com a publicação dos livros, mas dar ao Estado a possibilidade de decidir o que pode ou não pode ser publicado é afronta muitíssimo maior à liberdade de expressão – ainda mais quando tal decisão se baseia em critérios paralegais como “discurso de ódio”, que a prática brasileira já mostrou ser sinônimo de “qualquer coisa que desagrade uma vítima, um promotor ou um juiz”.
Não se perca de vista uma outra consequência, juridicamente mais irrelevante, mas de caráter prático: graças à censura de Dino, os livros de Dalvi, antes irrelevantes, agora são nacionalmente conhecidos, no que ficou conhecido como “efeito Streisand”. Os exemplares que escaparem à destruição por estarem em posse de indivíduos ou coleções privadas se tornarão raridades, e não se pode descartar o surgimento de um mercado clandestino de cópias, a exemplo do samizdat dos tempos soviéticos, prática pela qual dissidentes driblavam a censura do regime comunista espalhando textos “proibidos”.
Na distopia Fahrenheit 451, publicada em 1953 e que recebeu adaptações para o cinema, a televisão e o teatro, o protagonista Guy Montag é um “bombeiro”, encarregado de encontrar e queimar livros – quaisquer livros. Ao longo do tempo, o autor Ray Bradbury foi alterando sua interpretação da própria obra; em manifestações mais recentes, datadas dos anos 90, o escritor (falecido em 2012) chegou a dizer que seu livro “funciona ainda melhor porque hoje temos o politicamente correto. O politicamente correto é o verdadeiro inimigo atualmente (...) É controle do pensamento e controle da liberdade de expressão”. Dino conseguiu demonstrar que a ficção de Bradbury merece entrar na lista de distopias que, no Brasil, o STF está transformando em realidade.