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Editorial

O foro privilegiado e o pouco apreço do STF pela jurisprudência e pela segurança jurídica

STF Drogas
Supremo Tribunal Federal volta a julgar regras do foto privilegiado a partir de 12 de abril. (Foto: Nelson Jr./SCO/STF)

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O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, marcou para o próximo dia 12 a retomada de um julgamento sobre regras para a prerrogativa de foro, suspenso por um pedido de vista do próprio Barroso. Até o momento, já existem cinco votos a favor da mudança da jurisprudência estabelecida há apenas seis anos – o que é pouco tempo, relativamente falando em termos de sistemas jurídicos, especialmente tendo em vista a importância da segurança jurídica para uma nação.

Em 2018, analisando uma questão de ordem proposta durante o julgamento de uma ação penal contra Marquinhos Mendes, então prefeito de Cabo Frio (RJ) e deputado federal entre 2015 e 2017, o próprio STF decidiu estabelecer um alcance mais preciso para a prerrogativa de foro, também chamada “foro privilegiado”. Pela tese definida naquela ocasião, os crimes cometidos por autoridades com prerrogativa de foro só poderiam ser julgados pelo STF caso tivessem ocorrido durante o mandato e tivessem relação direta com o exercício da função. Além disso, uma vez encerrado o mandato, o caso sairia do Supremo e “desceria” para as instâncias inferiores, a não ser que a fase de instrução já tivesse se encerrado antes do fim do mandato. Outra exceção, definida em 2022 pelo STF, seria o caso de “mandato cruzado”: se um deputado federal se elegesse senador na sequência, ou vice-versa, o suposto crime permaneceria em julgamento no Supremo.

Há enorme prejuízo para o ordenamento jurídico de um país quando a jurisprudência se torna tão volúvel a ponto de ter pouco ou quase nenhum valor

O senador paraense Zequinha Marinho questionou esse entendimento em 2023, impetrando habeas corpus. Ele é suspeito da prática de “rachadinhas” enquanto era deputado federal, tendo exercido mandato entre 2007 e 2015. O inquérito começou no Supremo, mas, quando Marinho se tornou vice-governador do Pará, em 2015, o caso foi remetido ao TRF-1, com sede em Brasília e cuja jurisdição também inclui o Pará. Em 2019, Marinho voltou ao Legislativo federal, desta vez como senador. Como ele havia passado quatro anos fora do Congresso, não se tratava de “mandato cruzado”; mesmo assim, ele pediu que o caso relativo à sua época de deputado voltasse a ser julgado pelo Supremo, e não pela Justiça Federal do Distrito Federal, onde estava graças a uma outra decisão do TRF-1.

O relator do habeas corpus, Gilmar Mendes, foi favorável à ampliação “temporal”, pode-se dizer assim, da prerrogativa de foro, que seria mantida nos processos de crimes cometidos durante um mandato e relacionados a ele mesmo depois que esse mandato tivesse se encerrado. O foro privilegiado ainda seria aplicado mesmo que a denúncia ocorresse depois do fim do mandato, bastando para isso que o suposto crime tivesse ocorrido durante o exercício da função e estivesse relacionado a ela. Ou seja, mesmo não sendo mais deputado federal, e não havendo “mandato cruzado”, Zequinha Marinho deveria continuar a ser julgado pela “rachadinha” no STF e não na primeira instância. Esse entendimento já foi seguido por quatro ministros – Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Dias Toffoli –, faltando apenas um voto para que se torne majoritário.

Não é nosso objetivo, aqui, analisar se a mudança faz ou não sentido, mas reforçar o enorme prejuízo para o ordenamento jurídico de um país quando a jurisprudência se torna tão volúvel a ponto de ter pouco ou quase nenhum valor, reforçando a noção de que a corte, no fim, tem completo desprezo pela segurança jurídica a ponto de alterá-la com grande e preocupante frequência.

A insegurança jurídica, por si só, já desmoraliza a Justiça e desrespeita a sociedade; não raro, tem efeitos inclusive econômicos – como já se verificou quando o STF resolveu que a “coisa julgada”, em assuntos tributários, pode ser revertida – e pode provocar ondas de recursos e anulações de julgamentos anteriores, como recordou o ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol em sua análise do julgamento em curso no Supremo. No entanto, o risco de a principal corte do país cair em descrédito ainda maior se deve à possibilidade, que não há como ser descartada de antemão, de que, no fundo, o caso de Zequinha Marinho, cujo habeas corpus foi impetrado em setembro de 2023, esteja apenas sendo usado de forma conveniente para se chegar a outros alvos.

A jurisprudência não é imutável, mas é preciso haver razões muito graves para uma reversão. Não é o que tem ocorrido no STF brasileiro, que altera jurisprudências com muita frequência e poucos motivos

Afinal, como também foi lembrado por Dallagnol, se o entendimento de Gilmar Mendes sair vencedor, subitamente a corte ganharia legitimidade para julgar Jair Bolsonaro por supostos crimes cometidos durante sua passagem pela Presidência da República. A bem da verdade, não é como se o STF realmente precisasse disso, pois há muito tempo o princípio do juiz natural já foi jogado no lixo pela corte, que julga quem ela quiser julgar – bem o comprovam os inquéritos das fake news, dos atos antidemocráticos, das “milícias digitais” e os julgamentos do 8 de janeiro. Mas, enquanto todos esses casos envolvem cidadãos comuns, facilmente esmagáveis pelo arbítrio supremo, a situação muda de figura no caso de um ex-presidente da República. Um pouco de legitimidade, ainda que autoconcedida, não faria mal a ministros interessados em completar a “derrota do bolsonarismo”, para recorrer a uma expressão célebre de Barroso. Da mesma forma, um outro entendimento foi revertido em intervalo ainda menor: aquele sobre o início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância, considerado constitucional em 2016 e inconstitucional em 2019 – nesse meio tempo, a Superintendência da Polícia Federal em Curitiba havia recebido o preso mais famoso da história do país.

Como ensinou em 2022 o justice Samuel Alito, da Suprema Corte norte-americana, em Dobbs v Jackson, o profundo respeito à jurisprudência é essencial para a integridade do processo judicial e reduz o estímulo à litigância. Isso não quer dizer que a jurisprudência seja imutável, como o demonstrava a própria decisão em que Alito fez essas ponderações, e que revertia um julgamento anterior: Roe v Wade, de 1972. Mas, prossegue o justice, é preciso haver razões muito graves para tal – por exemplo, se a decisão a reverter estiver fundamentalmente equivocada. Não é o que tem ocorrido no STF brasileiro, que altera jurisprudências com muita frequência e poucos motivos. E, nas palavras da ex-ministra Rosa Weber, que mesmo sendo contrária à prisão em segunda instância votou contra um habeas corpus que livraria Lula da cadeia em 2018, “a imprevisibilidade (...) por si só qualifica-se como elemento capaz de degenerar o Direito em arbítrio”.

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