Em que democracia deste planeta o braço estatal é acionado para investigar alguém que criticou uma autoridade, dizendo que ela e a instituição a que pertence são “uma vergonha” e que estão “destruindo” o país? Se excluirmos, por razões óbvias, países que ostentam a “democracia” em seu nome, mas que são ou foram ditaduras cruéis – como a República Popular Democrática da Coreia, mais conhecida como Coreia do Norte, e a antiga República Democrática Alemã, a Alemanha Oriental –, é bem provável que sobre apenas uma alternativa: a inabaladíssima democracia brasileira.
Em ofício datado de 27 de março, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, pede que a Polícia Federal investigue um cidadão brasileiro que teria dito algumas palavras desagradáveis no aeroporto de Lisboa, onde Mendes fazia uma conexão durante uma viagem entre Brasília e Berlim, na Alemanha. O que teria dito de tão grave esse indivíduo? Segundo o relato do próprio ministro, as terríveis palavras que ele não suportou ouvir foram “Gilmar, você já sabe, mas não custa relembrar. Só dizer que você e o STF são uma vergonha para o Brasil e para todo o povo de bem. Só isso, tá? Infelizmente, um país lindo como o nosso está sendo destruído por pessoas como você”. Por fim, absurdo dos absurdos, o homem ainda publicou nas mídias sociais o vídeo do ocorrido.
Um constitucionalista e ministro do STF como Gilmar Mendes bem sabe que a Carta Magna, a doutrina e a jurisprudência protegem o discurso crítico dirigido a autoridades e pessoas públicas
E nada mais. Não há ameaça, não há bate-boca, nem tentativa de impedir que o ministro se deslocasse, ou algo do tipo. Obviamente, ninguém gosta de ser interrompido (Mendes parecia estar fazendo uma refeição ou ao menos um lanche) e filmado, mas há um oceano de distância entre o que realmente ocorreu e o efeito que o ministro quis atribuir ao episódio em seu ofício à PF: o de “intimidar ministro do tribunal” e “desestabilizar o funcionamento da instituição”. Em primeiro lugar, porque o ministro apenas esboça uma reação de desagrado, sem parecer minimamente intimidado; segundo, porque para que algumas poucas frases como essas sejam capazes de desestabilizar o funcionamento de uma suprema corte, será preciso atribuir a elas superpoderes muito maiores que aqueles do slogan identitário “palavras ferem”. Se o STF pode ser “desestabilizado” por ser chamado de “vergonha”, suas fundações podem ser consideradas extremamente frágeis e seus membros, o exemplo perfeito do que se convencionou chamar de “floquinhos de neve”, sinônimo de pessoa hipersensível que desaba com qualquer comentário negativo. A democracia brasileira, se Mendes estiver certo, não seria tão inabalável assim...
Um constitucionalista e ministro do STF como Gilmar Mendes bem sabe que a Carta Magna, a doutrina e a jurisprudência protegem o discurso crítico dirigido a autoridades e pessoas públicas. Como afirmou Celso de Mello em seu voto na ADI 4451, “a crítica, qualquer que tenha sido meio de sua divulgação, quando inspirada pelo interesse público, não importando a acrimônia e a contundência da opinião manifestada, ainda mais quando dirigida a figuras públicas ou a candidatos a cargos eletivos, não traduz nem se reduz, em sua dimensão concreta, ao plano do abuso da liberdade de expressão, não se revelando suscetível, por isso mesmo, de sofrer qualquer repressão estatal ou de expor-se a qualquer reação hostil do ordenamento positivo”. O mesmo Celso de Mello, em liminar que suspendeu temporariamente a perseguição contra Deltan Dallagnol no Conselho Nacional do Ministério Público, citara uma decisão judicial de 1986 na qual o desembargador relator afirmava que “a crítica dirigida a pessoas públicas (como as autoridades governamentais, os candidatos ou titulares de mandatos eletivos), por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade”.
Como se isso não bastasse, até mesmo a recente lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito afirma taxativamente que “não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais”, o que de imediato transforma todos os argumentos de Mendes em um enorme non sequitur quando tenta ligar o episódio de Lisboa a “um movimento articulado e coordenado de ataques aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, organizado por extremistas e detratores da democracia”. Nada disso, no entanto, impediu que o ministro chegasse ao cúmulo de, na prática, já dar seu veredito sobre a pessoa que o abordou – já identificada como um servidor do INSS em Minas Gerais –, chamada no ofício de “agente criminoso”.
Naquela mesma ADI 4451, o relator Alexandre de Moraes proferiu uma fase lapidar em seu voto vencedor: “Quem não quer ser criticado, satirizado, fica em casa”. Embora naquele contexto específico ela se referisse a candidatos a cargos eletivos, já que a ADI questionava um trecho da Lei das Eleições, não é preciso fazer grande esforço para saber que a frase se aplica a qualquer pessoa pública, inclusive (e especialmente) autoridades. Mesmo assim, os ministros do STF parecem não conseguir ou não querer compreender algo tão óbvio. Diante de críticas, respondem ou com um deboche indigno do cargo, como no “perdeu, mané” de Luís Roberto Barroso, ou com o inaceitável recurso à repressão estatal, como já fizeram Ricardo Lewandowski e o próprio Moraes – ironicamente, em episódios ocorridos ou em aviões, ou em aeroportos. Os ministros não são incriticáveis, por mais que pensem ou desejem sê-lo. Se não suportam a ideia de serem chamados de “vergonha”, mais valeria ouvir o conselho de Moraes – o relator da ADI 4451, não o passageiro em Roma – e pendurar a toga.