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Editorial

Gilmar Mendes dá aval para o abuso

Ministro Gilmar Mendes, do STF
O ministro Gilmar Mendes, do STF, reverteu monocraticamente decisão também monocrática de seu colega Celso de Mello sobre os processos contra Deltan Dallagnol no CNMP. (Foto: Fellipe Sampaio/STF)

Os processos que corriam no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) contra o procurador Deltan Dallagnol, até pouco tempo atrás coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, poderão voltar à pauta do órgão. Eles estavam suspensos por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello; no entanto, com sua licença médica, o caso passou para o ministro Gilmar Mendes, também da Segunda Turma. Foi Mendes quem reverteu a decisão de seu colega, em uma atitude muito questionável por inúmeros motivos.

Poderíamos, por exemplo, lembrar como os ministros do STF têm desconstruído, aos poucos, o que era uma tradição da corte: decisões monocráticas não costumavam ser derrubadas por outras decisões monocráticas, mas apenas pelos colegiados – seja a turma, seja o plenário. O caso dos processos contra Dallagnol não é o primeiro e nem será o último desse tipo, e é evidente que esses conflitos entre decisões individuais apenas reforça a tese de que, com frequência crescente, o STF age menos como uma corte de 11 ministros e mais como 11 cortes de um ministro só.

Não se pode alegar risco de prescrição para legitimar a continuação de julgamentos que violam reiteradamente as regras processuais e princípios básicos do Direito

Também se pode questionar o próprio fato de ter sido Gilmar Mendes a tomar essa decisão que prejudica Dallagnol. Pelo regimento do STF, com a ausência de Celso de Mello efetivamente caberia a Mendes assumir os processos, mas a melhor decisão, da parte do ministro, teria sido passá-los adiante para outro ministro ou submetido o tema ao colegiado. Afinal, o ódio do ministro pelo procurador é notório, a ponto de Mendes ter insultado Dallagnol e seus colegas da Lava Jato, em entrevistas e durante julgamentos, com termos como “gângsters”, “gente muito baixa, desqualificada”, “cretinos”, “gentalha”, “organização criminosa”, “crápulas” e afirmando que eles “usavam a prisão provisória como instrumento de tortura”. Foram tantas as injúrias que Mendes acabou condenado em primeira instância a indenizar Dallagnol (indenização que nem sairá do bolso do magistrado, mas será bancada pelo contribuinte brasileiro). Uma suspeição por inimizade, prevista tanto no artigo 254 do Código de Processo Penal quanto no artigo 145 do Código de Processo Civil, seria totalmente cabível neste caso. E não se pode nem mesmo alegar que as ofensas foram resposta a provocações de Dallagnol (o que invalidaria a suspeição), pois, sempre que se referiu a Mendes, o procurador se limitou a criticar, de forma objetiva, os votos do ministro e seus efeitos no combate à corrupção.

Mas o grande problema neste caso é nem o fato de uma decisão monocrática atropelar outra decisão monocrática, nem a evidente situação de suspeição do magistrado. Ocorre que a decisão de Celso de Mello era sólida e irretocável. O decano da corte apontou uma série de violações ao devido processo legal nos processos movidos contra Dallagnol a pedido dos senadores Renan Calheiros (MDB-AL) e Katia Abreu (PP-TO), como o cerceamento de defesa e o fato de ter sido ignorado o princípio do non bis in idem, que impede alguém ser de julgado mais de uma vez pelo mesmo fato – as condutas pelas quais Dallagnol responde agora já tinham sido analisadas por outros órgãos, como o Conselho Superior do Ministério Público Federal, e até mesmo no próprio CNMP, e em nenhum dos casos foi verificada qualquer irregularidade. Por fim, Celso de Mello apontou o problema mais grave: a enorme ameaça à liberdade de expressão de Dallagnol e, por extensão, de qualquer outro membro do Ministério Público.

Em outras palavras: são processos claramente abusivos, que nem deveriam ter sido iniciados. E é por isso que a alegação de Mendes, referente ao perigo de tais processos prescreverem, é insuficiente. O risco de prescrição pode e deve ser invocado para destravar casos em que todas as regras processuais estão sendo rigorosamente seguidas, mas não para legitimar a continuação de julgamentos que violam reiteradamente essas regras. Gilmar Mendes, no fim das contas, deu seu aval para que o CNMP siga praticando um abuso contra Dallagnol.

Os processos contra Dallagnol prescreveriam em 10 de setembro – um dia antes da data prevista para Celso de Mello voltar de sua licença médica, algo que o próprio Mendes destacou em sua decisão. Portanto, é certo que eles devem ser acrescentados na pauta da reunião do CNMP deste dia 8. “O não julgamento de um réu eventualmente culpado configura situação mais grave do que o julgamento e a absolvição de um réu eventualmente inocente”, afirmou o ministro, e tem razão; não há justiça quando um culpado escapa impune graças à prescrição. Mas que um réu inocente seja considerado culpado em um processo recheado de irregularidades é situação infinitamente pior. É isso que Gilmar Mendes está permitindo que ocorra.

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