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| Foto: Evaristo Sá/AFP

Tendo sido parte da minoria na votação do habeas corpus que pretendia livrar o ex-presidente Lula da cadeia, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes tem exposto algumas teses bastante controversas e cujas consequências aliviariam a vida do chefão petista condenado a 12 anos de cadeia. A última delas foi lançada em evento da revista Veja e é praticamente um insulto à legislação penal e às duas instâncias que já condenaram Lula.

Segundo o ministro, “é preciso discutir se os dois crimes a que ele foi condenado são realmente dois crimes”, em referência à corrupção passiva e à lavagem de dinheiro. No raciocínio de Mendes, poderia haver o entendimento de que a lavagem de dinheiro ocorreu dentro do contexto do ato de corrupção envolvendo Lula. Nesse caso, haveria apenas um crime, e não dois.

Se o crime de lavagem de dinheiro fosse descartado, tendo em consideração o voto do relator João Pedro Gebran Neto, do TRF4, a pena de Lula seria reduzida para os oito anos e quatro meses aos quais ele foi condenado por corrupção, anulando-se os três anos e nove meses por lavagem de dinheiro. Essa redução, por si só, teria vários impactos. Lula seguiria em regime fechado, já que a condenação ainda supera os oito anos, mas passaria mais rapidamente ao regime semiaberto.

Difícil compreender aonde Gilmar Mendes pretende chegar lançando esse tipo de tese

E haveria, ainda, um outro risco, bem mais grave. Pelo Código Penal, uma condenação a oito anos e quatro meses implica em um prazo prescricional de 16 anos – este seria o intervalo máximo entre o cometimento do crime e o oferecimento da denúncia, ou entre a denúncia e a condenação, ou entre a condenação e o trânsito em julgado. No entanto, como Lula tem mais de 70 anos, esse prazo cai pela metade, para oito anos. A defesa de Lula já havia tentado alegar que os crimes teriam prescrito por terem sido cometidos em 2009 e, como a pena dada na primeira instância por Sergio Moro era de seis anos por corrupção passiva, o crime estaria prescrito, já que o prazo prescricional seria de seis anos – por essa conta, o Ministério Público deveria ter oferecido a denúncia até 2015, mas o fez um ano depois. Isso faz toda a diferença: se houvesse prescrição, a condenação estaria anulada e Lula deixaria de ser um ficha-suja, ou seja, voltaria a ficar elegível.

Mas tanto Moro quanto o TRF4 defenderam a tese de que os atos criminosos se estenderam até 2014. Com isso, não haveria chance de prescrição mesmo com um prazo menor. E, como o TRF4 elevou a pena de Lula por corrupção passiva, o prazo prescricional também aumentou, afastando de vez a possibilidade de que o petista escape impune dos crimes pelos quais foi condenado e, ainda por cima, zombe do Brasil concorrendo à Presidência da República.

Cálculos e datas à parte, a tese de Gilmar Mendes faz algum sentido? Uma leitura do acórdão do julgamento que confirmou a condenação de Lula no TRF4 e do voto de Gebran já serve para dirimir qualquer dúvida a esse respeito. O acórdão faz questão de distinguir em que consiste cada crime – primeiro, “pratica o crime de corrupção passiva, capitulado no artigo 317 do Código Penal, aquele que solicita ou recebe, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceita promessa de tal vantagem”; e, depois, “o tipo penal da lavagem de dinheiro abarca o propósito de ocultar ou dissimular a localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores”, tendo acrescentado que “a ausência de título translativo do imóvel é compatível com a prática do delito, revelando a intenção de ocultar ou dissimular a titularidade ou a origem do bem”.

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Não é só isso: o acórdão mostra explicitamente que houve dois crimes diferentes, e não um “crime dentro do crime”: “A lavagem de ativos é delito autônomo em relação ao crime antecedente (não é meramente acessório a crimes anteriores), já que possui estrutura típica independente (preceito primário e secundário), pena específica, conteúdo de culpabilidade própria e não constitui uma forma de participação post-delictum ou mero exaurimento da corrupção”, diz o texto, reproduzindo trecho do voto de Gebran.

Difícil compreender aonde Gilmar Mendes pretende chegar lançando esse tipo de tese. Dado o seu vasto conhecimento jurídico, o ministro deveria muito bem saber que sua teoria é infundada. É preciso lembrar que, se hoje há pressão para que se reveja mais uma vez o início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância, é apenas porque ele mudou sua opinião – contrariando, aliás, o que escreveu em livros de Direito Constitucional a respeito do tema. É esse tipo de atitude que ameaça lançar o país na insegurança jurídica. Irônico é ter sido justamente em um evento que tinha como objetivo discutir o problema das fake news que Mendes lançou suas conjecturas que falsificam não as notícias, mas a lei e a Justiça.

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