A primavera acabou para os egípcios. Entre todos os países árabes que viram, desde 2011, a partida de seus ditadores, o Egito parecia começar a trilhar o caminho da democracia quando Mohamed Mursi venceu a eleição presidencial em junho do ano passado, apesar dos temores de fraude que favorecesse Ahmed Shafiq, um ex-ministro de Mubarak. Mas o mandato terminou com um golpe de Estado promovido pelo Exército no dia 3, com o apoio de milhões de egípcios que voltaram a ocupar a Praça Tahrir, símbolo da Primavera Árabe. Os militares pareciam querer uma transição pacífica, com a entrega do poder ao presidente da Corte Constitucional, mas logo na sequência passaram a prender líderes da Irmandade Muçulmana e a fechar veículos de comunicação que apoiavam Mursi. Os islamitas reagiram e confrontos já fizeram dezenas de mortos, principalmente na semana passada.
O mandato de Mursi foi tumultuado desde o início; o fechamento e a reabertura do Parlamento opuseram o presidente à Corte Constitucional e ao Exército, que à época ainda tinham vários aliados de Mubarak posteriormente, Mursi trocou o comando das Forças Armadas. A elaboração de uma nova Constituição para o país também teve turbulências. Com o pretexto de proteger a assembleia constituinte de interferências do Judiciário, Mursi assinou um decreto concedendo a si mesmo plenos poderes e imunidade judicial; os egípcios foram às ruas e o presidente recuou.
O conteúdo da nova Constituição mostrava que Mursi estava longe de ser um "presidente para todos os egípcios", conforme havia prometido na Praça Tahrir logo após sua eleição. O texto, composto quase que exclusivamente por membros da Irmandade Muçulmana e por salafistas (os membros não islâmicos da constituinte haviam renunciado em protesto contra a exagerada influência muçulmana), faria do Egito um país submetido à lei islâmica. Mesmo assim, a Constituição foi aprovada em um referendo do qual participaram apenas 33% dos eleitores do país, aumentando os temores de uma crescente islamização do país episódios de hostilidade contra cristãos coptas, por exemplo, tornaram-se mais frequentes, sem que os responsáveis fossem punidos.
Por mais que os islamitas vejam os instrumentos democráticos como meros meios de ascender ao poder e, então, passar a desprezá-los (no que imitam vários regimes socialistas, como o venezuelano), é inegável que Mursi havia sido legitimamente eleito pelo povo egípcio. A remoção de Mursi pela força não torna o Egito mais democrático do que ele seria com a permanência do presidente. Pelo contrário: o golpe abre uma série de precedentes, encorajando aqueles que acreditam ser possível se livrar de um mau governo não pelo voto, mas pelo clamor das ruas. Governos islamitas eleitos em outros países, ao ver o que houve no Egito, podem se dedicar a suprimir a oposição com mais força para que não tenham o mesmo fim de Mursi.
Mesmo clérigos muçulmanos vêm fazendo apelos à reconciliação, temendo que o Egito siga o caminho sangrento da Síria. Com o estrago já feito, a solução mais sensata seria a organização imediata de novas eleições, sem restrições à participação dos islamitas. E, se a Irmandade Muçulmana vencer novamente, que tenha a garantia de permanecer até o fim do mandato, tendo aprendido a lição de que é preciso governar não apenas para os seus.