Apesar do bom desfecho dos inaceitáveis acontecimentos de 8 de janeiro, com as forças de segurança recuperando o controle da Praça dos Três Poderes após militantes contrários ao presidente Lula promoverem o caos generalizado, a loucura golpista de quem quer tomar o poder a qualquer preço não arrefeceu, a julgar por convocações espalhadas pelas redes sociais e aplicativos de mensagens. Estes militantes insistem em lançar novos desafios à já tão combalida democracia brasileira, e que exigem das autoridades a missão de responder ao mesmo tempo com firmeza e respeito às liberdades constitucionais.
Órgãos de segurança e inteligência identificaram uma chamada, nas mídias sociais, para uma “megamanifestação nacional pela retomada do poder” que seria realizada às 18 horas desta quarta-feira – a convocação trazia os locais escolhidos em cada cidade, como o Posto 5 de Copacabana, no Rio; a Avenida Paulista, em São Paulo; e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Segundo o jornal O Estado de S.Paulo, as mensagens identificadas pelo governo chegavam a quase duas centenas, teriam sido enviadas antes das 19h30 do último domingo e trariam instruções sobre como evitar os efeitos de bombas de gás lacrimogêneo e outras dicas de sobrevivência.
É preciso rechaçar com veemência a insanidade de pretender “retomar o poder” pela via da violência. Todos os brasileiros de bom senso, especialmente aqueles mais à direita do espectro político, sabem que um golpe de Estado é algo absolutamente inaceitável, uma aventura irresponsável que lançaria o país inteiro, não apenas a Praça dos Três Poderes, no caos completo. Se os adversários do petismo pretendem “retomar o poder”, se eles desejam o fim dos excessos do STF, que o façam única e exclusivamente pela via democrática: fomentem novas lideranças, busquem espaços para a difusão do seu ideário, esclareçam os demais sobre o mal (inegavelmente real) que o petismo faz ao país, e apresentem-se para disputar a preferência do eleitor em 2024, nas eleições municipais, e em 2026, nas eleições estaduais e federal. Além disso, que pressionem os senadores para que exerçam seu papel de contrapeso ao STF, e os deputados para que aprovem a CPI do Abuso de Autoridade; que mantenham vigilância firme sobre o governo e, se ficar evidente o cometimento de algum crime de responsabilidade da parte do presidente Lula, que incentivem o Congresso a fazer a coisa certa, como fizera em 2016 com Dilma Rousseff.
Todos os brasileiros de bom senso, especialmente aqueles mais à direita do espectro político, sabem que um golpe de Estado é algo absolutamente inaceitável, uma aventura irresponsável que lançaria o país inteiro no caos completo
Qualquer coisa diferente disso é golpismo puro e simples, e chega a ser surreal que, mesmo depois de domingo, ainda haja quem aposte nesta estratégia para prevalecer pela força, como se fosse possível repetir a ação esperando um desfecho diferente. A bem da verdade, a insanidade é tanta que há quem se recuse a crer que se trate de algo organizado por antipetistas (por mais que o domingo tenha mostrado do que eles são capazes), e ressurgiram as denúncias de false flag, segundo as quais o ato desta quarta seria obra de esquerdistas disfarçados para, com isso, justificar novas e mais intensas medidas restritivas ou persecutórias: uma fonte antipetista ouvida pelo Estadão chegou a atribuir a convocação ao deputado André Janones (Avante-MG), apoiador de Lula e mestre na arte da criação e difusão de fake news.
Mas e se não for o caso de uma false flag? E se ainda houver número considerável de brasileiros que realmente defendem um golpe de Estado e queiram levá-lo a cabo ou instigar o poder armado a fazê-lo? Há resposta para isso? Certamente existe – e os verdadeiros democratas sabem que essa resposta está justamente na aplicação das ferramentas que a democracia e a Constituição oferecem; não falamos de uma tolerância ingênua que deixa crescer o monstro golpista até que fique incontrolável, mas da sábia combinação entre o rigor da lei e o respeito aos direitos individuais.
Lamentavelmente, no entanto, não é isso o que está ocorrendo, com a opção por novos avanços sobre as liberdades. A Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu ao Supremo, mas não se limitou a pedir que a corte proibisse a manifestação de quarta-feira: “Que se restrinja, pontual e momentaneamente, diante da situação de absoluta excepcionalidade, o exercício do referido direito de manifestação (que, como bem visto no último domingo 08/01/2023, para além de abusivo, foi verdadeiramente criminoso), vedando a interrupção do trânsito urbano e rodoviário em todo território nacional, bem como o acesso a prédios públicos por tais ‘manifestantes’, até que o estado de normalidade seja restabelecido”, foi o pedido do advogado-geral Jorge Messias.
O direito de manifestação é cláusula pétrea da Constituição, que em seu artigo 5.º, XVI, afirma que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. Essa liberdade de reunião só pode ser restringida ou abolida em caso de estado de defesa ou estado de sítio, como diz a Constituição nos artigos 136 e 139. Portanto, ao pedir “que se restrinja, pontual e momentaneamente, diante da situação de absoluta excepcionalidade, o exercício do referido direito de manifestação (...) até que o estado de normalidade seja restabelecido”, a AGU pediu algo que, fora dos estados de defesa e de sítio, é inconstitucional e arbitrário – afinal, quem decide quando estaria restabelecida a “normalidade”?
A incoerência é evidente: se o governo via necessidade de reduzir ou abolir o direito à manifestação, que usasse as ferramentas que a Constituição lhe garante: é para isso, entre outras finalidades, que servem os estados de defesa e de sítio. Se não os empregou, é porque avaliou que não havia essa urgência – como de fato não havia, e a intervenção pontual na segurança pública do Distrito Federal já bastava. Assim, o que o governo Lula acabou fazendo, por meio do pedido de sua Advocacia-Geral, foi deixar transparecer os seus pendores autoritários, disfarçados de zelo com a democracia.
Qual deveria, então, ser a resposta do ministro Alexandre de Moraes? É evidente que uma manifestação que se diz “pela retomada do poder” denota um caráter golpista e violento – pois de que outra forma o poder seria “retomado”? É claro que ela não estaria amparada pelo direito garantido no artigo 5.º, XVI da Carta Magna, e a Justiça poderia muito bem proibi-la e determinar que o poder público empregasse todos os meios para impedir que ela ocorresse, punindo quem insistisse no ato – o mesmo valeria para qualquer outra manifestação com o mesmo teor, ainda que com outro nome e realizado em outros dias, horários e locais. Mas Moraes, fiel a seu histórico, escolheu a generalização e acolheu integralmente o pedido da AGU, não sem antes exibir sua própria visão do direito à manifestação, querendo impor-lhe condições que não estavam na mente do constituinte originário.
Se o governo via necessidade de reduzir ou abolir o direito à manifestação, que usasse as ferramentas que a Constituição lhe garante, os estados de defesa e de sítio. Se não os empregou, é porque avaliou que não havia essa urgência
“Os direitos de reunião e livre manifestação são relativos e não podem ser exercidos, em uma sociedade democrática, de maneira abusiva e atentatória à proteção dos direitos e liberdades dos demais, às exigências da saúde ou moralidade, à ordem pública, à segurança nacional, à segurança pública, defesa da ordem e prevenção do crime, e ao bem-estar da sociedade”, escreveu Moraes. De fato, alguns desses critérios (como o respeito à ordem e à segurança) foram contemplados na Constituição, quando se defende o direito à manifestação desde que seja pacífica. Adicionalmente, o constituinte apenas determinou o aviso prévio às autoridades (dispensando até a necessidade de autorização) e que já não houvesse outro ato marcado para a mesma hora e local. Nenhuma palavra sobre “exigências de moralidade” ou “bem-estar da sociedade”, conceitos imprecisos que dependem das convicções da autoridade ou do juiz.
Depois dessa perigosa digressão teórica, Moraes encerrou ordenando que as autoridades “adotem as providências necessárias para impedir quaisquer tentativas de ocupação ou bloqueio de vias públicas ou rodovias, bem como de espaços e prédios públicos em todo o território nacional, notadamente – mas não só – nos locais indicados na postagem “mega manifestação nacional – pela retomada do poder”, além de “determinar a proibição de interrupção ou embaraço à liberdade de tráfego em todo o território nacional, bem como o acesso a prédios públicos” (destaques do próprio Moraes).
À primeira vista, pode parecer que Moraes apenas proibiu o que já era proibido; a própria Gazeta do Povo sempre lembrou que bloqueios em rodovias como os promovidos por caminhoneiros em greve eram antidemocráticos ao impedir o direito de ir e vir dos demais cidadãos. No entanto, uma corrente da doutrina reconhece que, especialmente quando a manifestação ocupa vias urbanas, o direito de ir e vir não fica totalmente prejudicado pela existência de rotas alternativas, e a exigência constitucional de aviso prévio permite que a autoridade se organize para mitigar os transtornos ao tráfego. E, da forma como foi redigida a decisão de Moraes, qualquer manifestação pacífica que esteja amparada pelo inciso XVI do artigo 5.º da Constituição se tornaria tão proibida quanto os atos golpistas, bastando que bloqueie vias públicas ou rodovias – como, aliás, fizera na noite de segunda-feira um grande protesto “em defesa da democracia” que bloqueou as duas pistas da Avenida Paulista antes de seguir para outros pontos do centro de São Paulo. E, provando que o diabo mora nos detalhes, Moraes não estipulou uma duração para a vedação por ele determinada.
Um único homem está decretando medidas que só poderiam vigorar em caso de estado de defesa ou de sítio, situações que não existem no Brasil e que dependeriam de um decreto presidencial aprovado pelo Congresso Nacional
Temos, assim, um único homem decretando medidas que só poderiam vigorar em caso de estado de defesa ou de sítio, situações que não existem no Brasil e que dependeriam de um decreto presidencial, depois de ouvidos os conselhos da República e de Defesa Nacional, e que teria de ser aprovado pelo Congresso Nacional. E Alexandre de Moraes não pertence a nenhum desses poderes ou órgãos. A corda é esticada cada vez mais, com a Constituição tornando-se acessório descartável, em um erro absurdo que, mais uma vez, conta com a conivência daqueles, no poder, na sociedade civil organizada e na opinião pública, julgam que contra golpistas e “terroristas” vale tudo, sem perceber (ou talvez até percebendo) que, assim, validam a ideia de que os fins justificam os meios.
A julgar pelos relatos da imprensa, o fim da tarde desta quarta veio sem manifestações, muito menos tumultos. Quer se tratasse realmente de uma farsa arquitetada pela esquerda, quer os golpistas tenham recuado diante das providências para garantir o cumprimento da decisão de Moraes, o fato é que o objetivo foi alcançado e evitou-se a repetição do 8 de janeiro. Que isso sirva como oportunidade para este novo abuso ser retificado, já que a decisão monocrática será julgada em plenário virtual a partir desta quinta-feira. Proíba-se o que é razoável proibir, e preserve-se a liberdade que o constituinte quis garantir ao brasileiro, de manifestar-se pacificamente, mesmo em tempos conturbados como os atuais.