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Independentemente de quem saia vencedor do segundo turno, no próximo domingo, ele terá vencido um pleito que, mais uma vez, mostra uma nação profundamente dividida. A diferença de 10 milhões de votos que separou Jair Bolsonaro de Fernando Haddad em 2018 não deve se repetir – as perspectivas são de um resultado bem mais apertado. Além disso, haverá dezenas de milhões de brasileiros que não consideraram nenhum dos dois candidatos dignos de seu voto. Mas Bolsonaro ou Lula terão de mostrar que são capazes de governar também para todos os que não lhes deram seu voto em 30 de outubro.
A vitória de um candidato nas urnas lhe concede a legitimidade para levar adiante o programa político que ele apresentou ao eleitor durante a campanha, o que inclui uma escala de prioridade entre diversos temas e certas escolhas a respeito de como tratar esses assuntos e os inúmeros desafios de um país como o Brasil. Isso não significa, no entanto, que o programa derrotado não tenha seus méritos, nem que os assuntos nele tratados não mereçam ser contemplados pelo governo vencedor. As preocupações de quem não votou no candidato eleito não podem ser simplesmente ignoradas; a democracia não é uma “tirania da maioria” em que à minoria cabe simplesmente se calar e aguardar a próxima eleição.
Governar para todos é trabalhar pelo bem comum para a totalidade dos brasileiros, independentemente de classe socioeconômica, região onde vivem, características ou preferências pessoais
Um governo que priorize o protagonismo da iniciativa privada no setor econômico não pode, por exemplo, fechar os olhos ao drama da miséria e da fome, esperando que a geração gradual de emprego traga sustento aos mais pobres; é preciso atuar diretamente em bons mecanismos de transferência de renda para suprir as necessidades imediatas enquanto a melhora da economia não alcança todos os brasileiros. Da mesma forma, um governo que priorize a assistência social não pode descuidar da liberdade econômica que facilitará às empresas prosperar e criar mais emprego. Um governo que rejeite excessos da militância identitarista não pode fechar os olhos a situações de preconceito, e um governo que tenha o identitarismo como plataforma jamais pode sacrificar liberdades democráticas, como a de expressão e a religiosa, diante do altar das minorias étnicas ou comportamentais.
O Chile recente é o melhor exemplo do que ocorre quando os eleitos se preocupam em governar apenas para os seus e não para todos. O enorme esforço de elaborar uma nova Constituição para o país naufragou retumbantemente e terá de recomeçar porque a maioria de esquerda na Assembleia Constituinte eleita em 2021 simplesmente ignorou a outra parcela do país. O texto redigido pelos constituintes reinventava o país do zero, desprezava todos os avanços socioeconômicos do modelo liberal anterior e dava vazão às plataformas de esquerda em sua forma mais radical, com direitos ilimitados e aceitando todo tipo de reivindicação identitarista. No plebiscito de setembro, o “rejeito” venceu com avassaladores 25 pontos porcentuais de vantagem sobre o “aprovo”.
Não se trata, obviamente, de diluir ou renegar as plataformas vencedoras para acomodar desejos do lado derrotado, mas simplesmente de compreender que o vencedor neste domingo será presidente de um país inteiro, não apenas daqueles que o elegeram. O bem comum pelo qual é obrigação do governante trabalhar não é um “bem da maioria” de corte utilitarista, mas “um estado de coisas que facilita – ou pelo menos não dificulta – a cada indivíduo a possibilidade de perseguir, se assim o desejar, o próprio desenvolvimento integral e sua realização por meio da busca da excelência”, como definimos em nossas convicções. Aqui, a ênfase está em “cada indivíduo”: governar para todos é proporcionar esse “estado de coisas” à totalidade dos brasileiros, independentemente de classe socioeconômica, região onde vivem, características ou preferências pessoais. Só um estadista será capaz disso, reconstruindo as pontes quebradas neste Brasil altamente polarizado.