Um instrumento que, às vezes, é a única maneira de se comprovar certos crimes ou irregularidades está, desde abril, em uma situação de “limbo” que opõe o Congresso Nacional e o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Trata-se da possibilidade do uso de “gravações ambientais” – a gravação de uma conversa realizada por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro – como prova de acusação. A divergência deixa advogados, agentes da lei e juízes em situação complicada, na dúvida sobre que procedimento adotar, e precisa ser sanada logo, de uma forma que não facilite a impunidade.
Não é proibido, nem é crime gravar as próprias conversas, independentemente do assunto tratado – dos mais corriqueiros aos mais escabrosos. E o STF, em sua jurisprudência, vem considerando que tais gravações, uma vez comprovada a sua integridade, podem ser usadas como evidência para se incriminar alguém, mesmo que sejam realizadas por iniciativa própria de um dos interlocutores, sem autorização prévia do Ministério Público ou da polícia. Esta jurisprudência, que defende a legalidade “da captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação”, existe ao menos desde 2009, como lembrou o ministro Edson Fachin em 2017, ao autorizar abertura de inquérito contra o então presidente Michel Temer, no célebre caso das gravações realizadas por Joesley Batista. Ainda que o caso específico de Joesley envolva outras discussões, como a configuração de um “flagrante preparado” – quando se induz alguém a cometer crime, o que é ilegal –, estava claro que uma gravação poderia, sim, ser usada como prova de acusação.
Permitir que gravações ambientais sejam usadas apenas para a defesa é um retrocesso no combate à corrupção e a vários outros crimes praticados a portas fechadas
O Congresso Nacional, entretanto, durante a tramitação do pacote anticrime, inseriu um trecho – que não estava originalmente previsto no texto elaborado pelo então ministro Sergio Moro – que restringia o uso das gravações ambientais, considerando-as lícitas apenas como prova de defesa, não mais de acusação: “A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação”. O presidente Jair Bolsonaro, no entanto, vetou este trecho, alegando – corretamente – que “a propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime”.
A distinção é essencial, pois a licitude ou ilicitude de provas não pode depender apenas de quem é beneficiado ou prejudicado por ela; é preciso analisar as circunstâncias em que foram obtidas – por exemplo, se elas decorrem de um crime, como um hackeamento (caso das supostas mensagens atribuídas à Lava Jato), ou de um procedimento realizado de forma irregular, como um grampo telefônico sem autorização judicial. E, se o meio de obtenção de determinada evidência é perfeitamente legal – como o é a gravação das próprias conversas –, não faz sentido que ela só possa ser usada como meio de defesa. Mesmo assim, em março os deputados derrubaram o veto de Bolsonaro, e em abril os senadores fizeram o mesmo, restaurando o trecho que tinham incluído no pacote anticrime e que só permite o uso da gravação ambiental para inocentar réus, não mais para incriminá-los.
A alteração incluída pelo Congresso, vetada por Bolsonaro e restaurada pelo mesmo Congresso é, de fato, um enorme retrocesso no combate a diversos crimes que ocorrem a portas fechadas e que muitas vezes só podem ser comprovados por meio deste recurso. As vítimas em casos de corrupção ou extorsão já não conseguiriam levar seus achacadores à Justiça com base em gravações, como disseram à Gazeta do Povo especialistas e autoridades envolvidos no combate à corrupção. Mas diversas outras situações graves também poderiam ficar impunes. Funcionários vítimas de assédio sexual ou moral no trabalho já não poderiam comprovar as investidas de seus chefes ou superiores por meio de gravações. Uma mulher vítima de violência doméstica não mais poderia gravar as ameaças do marido ou companheiro e usar os áudios para fazer cessar as agressões.
Dias depois de o Senado derrubar o veto presidencial, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) protocolou o Projeto de Lei 1.503/2021, que remove do texto legal a expressão “em matéria de defesa”, deixando claro que as gravações também poderiam ser usadas na acusação. Na justificativa, Randolfe usou exatamente as mesmas palavras empregadas por Bolsonaro. O texto ainda não começou a tramitar e aguarda a designação de um relator, mas é importantíssimo que seja analisado e aprovado o quanto antes. Afinal, nestes tempos de desmonte do combate à corrupção, essas quatro palavras podem representar a diferença entre um crime punido ou um crime sem castigo.
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