A campanha do Supremo Tribunal Federal contra a imunidade parlamentar, pela qual deputados e senadores são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, como diz o artigo 53 da Constituição, segue à toda. A vítima da vez é o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), tornado réu dos crimes de calúnia e difamação pela Primeira Turma do STF, em julgamento previsto para terminar na próxima semana em plenário virtual. A maioria pelo recebimento da denúncia já está formada, com os votos dos ministros Alexandre de Moraes (relator), Cármen Lúcia (ex-“cala a boca já morreu”), Flávio Dino e Cristiano Zanin, faltando apenas a manifestação de Luiz Fux.
A queixa-crime foi apresentada por outro parlamentar goiano, o senador Vanderlan Cardoso (PSD). Em fevereiro de 2023 – portanto, já exercendo mandato de deputado –, Gayer publicou um vídeo em seus perfis de mídias sociais criticando duramente a reeleição de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) para a presidência do Senado, derrotando um colega de partido de Gayer, o potiguar Rogério Marinho. O deputado afirmava que senadores haviam sido “comprados com cargos de segundo escalão” para votar em Pacheco; a certa altura, referiu-se diretamente a dois senadores de seu estado: “em Goiás, Vanderlan Cardoso e [Jorge] Kajuru, dois vagabundos que viraram as costas para o povo em troca de comissão, não é não, Vanderlan?”
A manifestação de um deputado sobre a escolha do comando de uma casa legislativa, ainda que não seja aquela à qual ele pertence, não deixa de ser assunto de interesse público e que, portanto, está dentro do escopo de sua função
O relator Moraes, sempre pronto a manietar a liberdade de expressão dos brasileiros impondo-lhe os limites que ele mesmo acha mais convenientes, e não os que estão na lei, repetiu alguns dos clichês que costuma usar em suas ordens de censura, e acrescentou que as palavras de Gayer “constituem ofensas que exorbitam os limites da crítica política”, e que a imunidade parlamentar definida no caput do artigo 53 da Constituição só se aplicaria a declarações relacionadas ao desempenho das funções parlamentares, o que não seria o caso em questão. Um erro grave da parte de Moraes. Afinal de contas, a manifestação do deputado sobre a escolha do comando de uma casa legislativa, ainda que não seja aquela à qual ele pertence, não deixa de ser assunto de interesse público e que, portanto, está dentro do escopo de sua função.
Neste sentido, foram muito certeiras as palavras de Celso de Mello em outro julgamento, de maio de 2022, que tornou Kajuru réu por afirmações (até mais grosseiras que as de Gayer) sobre Vanderlan Cardoso e o ex-deputado Alexandre Baldy. “O instituto da imunidade parlamentar em sentido material existe para viabilizar o exercício independente do mandato representativo, revelando-se, por isso mesmo, garantia inerente ao parlamentar que se encontre no pleno desempenho da atividade legislativa”, afirmou o então ministro. “Não obstante os doestos e as afirmações moralmente contumeliosas e socialmente grosseiras atribuídas ao querelado, a incidência tutelar da imunidade parlamentar material, no entanto, é suscetível de reconhecimento, no caso, em face da situação de antagonismo político que se registra, no plano regional”, completou. Mello, no entanto, acabaria vencido naquele julgamento; em uma das ações relacionadas ao caso, o senador já foi condenado a indenizar Baldy.
E aqui tem residido a grande falha de muitos casos recentes de relativização da imunidade parlamentar. Desde o célebre caso do agora ex-deputado Daniel Silveira, preso em 2021 por divulgar um vídeo no qual fazia uma série de afirmações bastante condenáveis sobre ministros do STF, o Supremo tem tido entendimentos muito restritos a respeito do que venha a ser uma manifestação relacionada ao exercício do mandato parlamentar, especialmente quando feita fora das dependências do Congresso, por exemplo em mídias sociais ou eventos. Isso explica, por exemplo, outro caso surreal: o da investigação atualmente em curso contra Nikolas Ferreira por ter dito, em um evento em Nova York ao qual ele tinha sido convidado justamente por ser um jovem deputado, que Lula era um “ladrão que devia estar na prisão”. Se a crítica – ainda que mais ácida ou deselegante – a um mandatário ao qual ele faz oposição, feita em um evento do qual o deputado participou em virtude de ser um detentor de mandato, é uma “situação (...) estranha a essa causa [o exercício da função parlamentar]”, como disse a PGR ao defender a abertura de investigação, o que sobra para ser protegido pela imunidade parlamentar?
Como lembrou o constitucionalista André Marsiglia, “o artigo 53 não faz nenhuma relativização da imunidade”. O jurista, analisando o contexto das afirmações de Gayer, lembrou que não há ali “nada que o debate público não absorva, nada que a imunidade parlamentar não permita. Nada novo”, acrescentando que “parlamentares não estão circunscritos aos limites da crítica, estão protegidos pela imunidade, sua liberdade é maior que a nossa, falam pela coletividade que os elegeu”. Ora, se está evidente a relação entre as falas de um parlamentar – esteja ele onde estiver – e o seu papel de deputado ou senador, temos aí tudo o que é necessário para encerrar de vez qualquer pretensão punitiva. Não há crime, ponto final.
Um deputado ou senador que recorre ao STF para punir um colega por “opiniões, palavras e votos” ignora, ou quer ignorar, que está ajudando a demolir uma garantia democrática que também o protege
O que Moraes fez em seu voto vencedor foi o oposto: primeiro, analisou se havia crime, e só depois de concluir estar “presente, nestes termos, a justa causa para a ação penal” ele enfrentou o fato de Gayer ser um parlamentar, já com o entendimento condicionado pelo fato de ter visto ali os crimes contra a honra de Vanderlan Cardoso. Assim, bastou dizer que “a conduta realizada não guarda nexo com o exercício da função parlamentar”, repetir esta ideia mais algumas vezes ao longo do voto sem explicar por que uma discussão sobre a eleição para a presidência do Senado não teria ligação com a função política de Gayer, e pronto: mais um parlamentar tem sua imunidade violada. Em resumo: analisar tais casos ao contrário, como fez Moraes ao concluir que, se há crime, não há imunidade, é um absurdo ilógico – é a própria negação da imunidade parlamentar.
Os senadores goianos têm todo o direito de se sentirem ofendidos pelas palavras de Gayer, mas a Justiça nunca foi e nem deveria ser o locus para resolver tais disputas. O constituinte de 1988 foi muito enfático ao proteger todas as manifestações verbais dos parlamentares, determinando que apenas os próprios pares poderiam condenar um membro do Congresso por palavras ofensivas ou ataques à honra dos demais – é para isso que existem os processos de cassação por quebra de decoro parlamentar. Um deputado ou senador que recorre ao STF para punir um colega por “opiniões, palavras e votos” ignora, ou quer ignorar, que está ajudando a demolir uma garantia democrática que também o protege. Isso não seria um problema se os guardiões da Constituição levassem a sério sua missão e rejeitassem tais ações, amparando-se no artigo 53 da Carta Magna. Mas os ministros já deram muitas demonstrações de que, para eles, o que está na Lei Maior do país só vale se eles assim o quiserem.
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