O principal argumento para que o Supremo Tribunal Federal julgasse a criminalização da homofobia, por meio do Mandado de Injunção 4.733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, era, como diz o próprio tipo de uma das ações, a suposta omissão do Congresso Nacional em legislar sobre o assunto. A própria ideia de que o Poder Legislativo estaria sendo omisso nesta questão, em si, já é controversa, pois a opção por rejeitar ou até mesmo não analisar determinado projeto de lei (como ocorreu com o PL 122/2006, sobre a homofobia) já é, por si só, um juízo que se faz acerca dessa proposição legislativa.
Mas, entre fevereiro deste ano, quando o Supremo começou o julgamento, e esta quinta-feira, quando a corte retomou o assunto, o Congresso não ficou parado. Na quarta-feira, dia 22, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou dois projetos de criminalização da homofobia, o 672/2019 e o 191/2017. O primeiro faz justamente aquilo que as entidades LGBT pediam ao Supremo: a inclusão da discriminação por sexo, orientação sexual e identidade de gênero na Lei do Racismo (7.716/89); o segundo inclui na Lei Maria da Penha a agressão contra transexuais. O Senado notificou o STF sobre a tramitação dos dois projetos, o que deveria ser mais que suficiente para que os ministros suspendessem o julgamento e aguardassem o fim da tramitação no Legislativo.
Ao subordinar a questão jurídica à questão político-circunstancial que envolve Congresso e Supremo, Fux falseou o mérito da discussão
No entanto, não foi o que ocorreu. Por nove votos a dois, os ministros decidiram seguir com o julgamento, usando argumentos como o de que a tramitação de projetos de lei pode ser um processo longo, e que não há garantia de aprovação. À exceção de Marco Aurélio Mello e do presidente da corte, Dias Toffoli, os ministros invocaram um precedente de 2007. Até então, a corte entendia – corretamente – que a existência de um processo em tramitação no Legislativo afastava a acusação de omissão; naquele ano, entretanto, o STF mudou seu entendimento. Diante disso, é preciso perguntar: o que seria preciso, então, para que não fosse caracterizada a omissão parlamentar? A impressão que fica, mas que não se diz às claras, é que haverá omissão sempre que o Congresso não decida da forma que os ministros julgam correta. E, diga-se de passagem, a acusação de lentidão no processo legislativo soa estranhíssima quando se sabe que a corte consegue procrastinar decisões importantes por anos – muitas vezes, bem mais tempo que o necessário para a aprovação de uma lei.
Alguns dos ministros não esconderam que havia outros fatores por trás da decisão de continuar com o julgamento sobre a criminalização da homofobia, apesar de o Senado estar tratando do tema. “Se esse requerimento não tivesse sido precedido desse episódio, eu confesso que ponderaria que nós deveríamos ponderar um critério de prudência política (…) Não se trata de retaliação, trata-se de postura judicial: ou o Judiciário é independente, ou o Judiciário é subserviente”, disse Luiz Fux. O requerimento que mencionava era a notificação do Senado, informando que já não havia omissão; o “episódio” que o precedeu foi o pedido coletivo de impeachment dos quatro ministros que já tinham votado a favor da criminalização da homofobia em fevereiro – Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso.
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Em outras palavras, o que Fux deixa evidente é que as considerações sobre haver ou não omissão parlamentar se tornaram um fator secundário; o principal, na sessão desta quinta-feira, era reafirmar a independência do Judiciário diante do que Celso de Mello chamou de “superlativa intolerância”, referindo-se ao pedido de impeachment protocolado por um grupo de deputados, que agiu dentro das regras estabelecidas pela Constituição, independentemente da sensatez ou não do seu pedido. Ao subordinar a questão jurídica – que, no STF, deveria ser o essencial – à questão político-circunstancial que envolve Congresso e Supremo, o que Fux faz é falsear o mérito da discussão. Já não se discute se há ou não omissão; trata-se apenas de decidir quem tem a palavra final.
A sessão desta quinta-feira deixou claro: há ministros do Supremo que realmente querem legislar. Querem fazê-lo mesmo quando o Congresso está cumprindo sua função e colocando projetos de lei para tramitar. E insistem no julgamento mesmo quando um dos projetos aprovados na CCJ, ao inserir a homofobia na Lei do Racismo – um equívoco que já comentamos neste espaço –, vai exatamente na mesma direção da maioria formada no STF, com os votos dados na quinta-feira por Rosa Weber e Luiz Fux. O que não fariam se o Congresso estivesse agindo, mas tomando uma direção oposta à convicção de ministros que, como já afirmou Barroso, querem “empurrar a história”? Na sessão desta quinta, o Supremo encontrou uma nova forma de desprezar o Legislativo. Antes, os ministros simplesmente legislavam; agora, também se dão o direito de dizer que o Congresso não está legislando mesmo quando projetos de lei tramitam e colecionam aprovações.
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