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Relatório da PF sobre as imagens das supostas agressões de casal no aeroporto de Roma não traz uma conclusão precisa. O texto diz que os acusados “possivelmente”, “podem ter ofendido, injuriado ou até mesmo caluniado”. Mesmo assim, os dois tiveram seus celulares e computadores apreendidos.
Relatório da PF sobre as imagens das supostas agressões de casal no aeroporto de Roma não traz uma conclusão precisa. O texto diz que os acusados “possivelmente” “podem ter ofendido, injuriado ou até mesmo caluniado”. Mesmo assim, os dois tiveram seus celulares e computadores apreendidos.| Foto: Reprodução / Relatório PF

A montanha pariu um rato. Desde o momento em que surgiu a informação de que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, teria sido hostilizado por brasileiros no aeroporto de Roma, em julho, não faltaram reações exaltadas. O presidente Lula chamou os suspeitos de “canalhas” que “não merecem respeito”, e insinuou que já deviam algo à Justiça. Muito antes que as imagens do aeroporto tivessem sido enviadas ao Brasil pelas autoridades italianas, o que só ocorreu um mês atrás, parte da imprensa chegou a dizer que elas confirmavam a versão do ministro. Pois o que estava sendo tratado como golpismo, um inaceitável ataque ao Estado de Direito e às instituições, como se Moraes fosse a encarnação da democracia, se transformou em um imenso “ninguém sabe ao certo o que realmente aconteceu”.

Na quarta-feira, o ministro Dias Toffoli levantou o sigilo do inquérito que investiga o episódio, mas manteve o segredo sobre as imagens propriamente ditas – segundo Toffoli, porque as câmeras mostram outras pessoas sem relação com o caso, e porque os suspeitos já foram identificados. O relatório da Polícia Federal é tudo, menos assertivo. As descrições dos frames abusam do termo “parece” e “aparentemente”, e o ministro aparece pouquíssimas vezes em comparação com seu filho e com o casal Roberto Mantovani e Andreia Munarão. O texto diz, por exemplo, que Roberto Mantovani “levantou a mão e, aparentemente, chegou a bater no rosto da vítima” em “um pequeno choque (ou mesmo um tapa)”. A PF ainda afirma que, “pela ausência de captação de áudio pelas câmeras, (...) não foi possível ouvir vozes que pudessem contribuir para a melhor elucidação da dinâmica dos fatos. Tampouco a resolução das imagens permitiu fazer qualquer tentativa de leitura labial dos envolvidos nas discussões”. Afirma, ainda, que Roberto e Andreia “podem ter ofendido, injuriado ou mesmo caluniado o ministro Alexandre de Moraes e seu filho” (destaques nossos). Isso não impediu a PF de fazer sua “interpretação do que ocorreu no saguão daquele aeroporto”, com várias ilações. “Não é razoável imaginar que alguém que queira ‘afastar’ outrem de perto de si atinja com a mão o rosto da outra pessoa, e que tal atitude seja considerada algo normal, sem qualquer relevância”, diz o relatório, por exemplo, sobre o suposto tapa de Roberto no filho do ministro.

Ainda que a versão de Moraes e sua família fosse a verdadeira, haveria justificativa para a devassa a que foram submetidos os Mantovani, chegando-se inclusive ao confisco de celulares e computadores? A resposta é um enfático “não”

É nítido, ainda, o esforço da PF em pintar o casal como mentiroso. Eles alegaram não ter ofendido o ministro, mas o relatório diz que “as declarações (...) não puderam ser confirmadas pela análise das imagens, pois não há áudios nos arquivos enviados. Tampouco foi possível confirmar a veracidade da negativa de Roberto de que sua esposa Andreia Munarão teria se dirigido ao ministro afirmando que ele seria ‘bandido, comunista e comprado’”. Em outro trecho, o relatório diz que Roberto “afirmou ainda que o ministro Alexandre de Moraes, enquanto tirava as fotos já mencionadas, chegou a dizer que ‘quando chegarem no Brasil vocês vão ser presos’. Quanto a esta alegação (...), nem mesmo se houvesse captação de som seria possível afirmar que o ministro teria feito tais afirmações, pois era grande a distância entre a câmera e o local da confusão”. Seria de se supor que a PF faria ressalvas semelhantes às afirmações do próprio ministro de que teria sido ofendido, já que o ônus da prova é de quem acusa. Mas, a esse respeito, o relatório é bem mais sucinto, limitando-se a repetir a versão da família de Moraes – inclusive com as supostas ofensas – e afirmando que “não há indícios a se analisar nos arquivos fornecidos que permitam fazer a correlação das imagens com os depoimentos dos demais familiares”. A diferença de tratamento é gritante.

Em resumo, não há meio algum de se elucidar o caso prescindindo das versões dos envolvidos, nenhuma das quais pode ser confirmada ou desmentida pelas imagens. A não ser que surja alguma outra evidência, como algum vídeo feito por alguém que tenha participado do suposto entrevero ou que estivesse próximo – o máximo que existe a esse respeito é um corte de 10 segundos, com o bate-boca já em andamento, no qual Moraes chama os investigados de “bandidos” e o filho do ministro diz que “serão todos identificados” –, o caso só será levado adiante se Supremo ou PF estiverem muito dispostos a forçar a barra e tirar conclusões por conta própria, e não com base no que as câmeras do aeroporto dizem – ou, mais adequadamente, não dizem. Mas este é o nível mais superficial, pode-se assim dizer, de todo o absurdo que envolve este caso. Pois é preciso perguntar: ainda que a versão de Moraes e sua família fosse a verdadeira, haveria justificativa para a devassa a que foram submetidos os Mantovani, chegando-se inclusive ao confisco de celulares e computadores? A resposta é um enfático “não”. Se o que estava sendo investigado era um possível crime de injúria, calúnia ou difamação, ou mesmo uma possível agressão física, “nada do que a polícia estivesse buscando ali seria capaz de elucidar o episódio do aeroporto, mesmo que a PF considere estar investigando também supostos crimes de desacato e perseguição – o que de partida já parece muito descabido”, como afirmamos neste espaço dias após o episódio.

A apreensão dos aparelhos e o fato de a PF ter feito perguntas aos Mantovani sobre os atos de 8 de janeiro, sobre as manifestações diante dos quartéis após a vitória de Lula, e sobre envio de mensagens a respeito de urnas eletrônicas, assuntos sem relação alguma com o episódio do aeroporto, não deixam dúvida: a PF – por iniciativa própria ou por orientação do Supremo, pouco importa – estava conduzindo uma “pesca probatória”, tentando encontrar elementos que incriminassem o casal por qualquer outro possível delito, independente do entrevero em Roma. Uma prática abusiva, mais afeita a Estados policialescos comunistas que a uma democracia, mas que no Brasil tem sido banalizada, como demonstra reportagem da Gazeta do Povo. O casal que atravessou o caminho de Moraes foi apenas a vítima mais recente deste recurso; até mesmo a Procuradoria-Geral da República já havia apontado para o uso dessa prática em dois casos: o dos empresários investigados após a revelação de conversas em um grupo de WhatsApp, e o do tenente-coronel Mauro Cid, inicialmente investigado por suposta fraude em cartões de vacina da família Bolsonaro, mas que foi subitamente jogado no meio dos escândalos das joias sauditas e da chamada “minuta do golpe”.

Para uma corte em que ministros se exasperam ao falar de um suposto “Código de Processo Penal soviético”, atribuindo a juízes práticas abusivas inventadas para declará-los suspeitos, tamanha tolerância com uma prática abusiva real e autenticamente soviética – “mostre-me o homem e eu encontrarei o crime”, dizia Lavrentii Beria, o chefe da polícia política stalinista – é escandalosa. Nesta semana em que o Brasil recorda os 35 anos de sua Carta Magna, que garante a brasileiros direitos como a ampla defesa e o de não ser julgado por tribunal de exceção, o caso dos Mantovani nos mostra o quão distantes estamos do cumprimento pleno das proteções mais básicas que o constituinte de 1988 quis dar a todos os cidadãos.

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