Mais uma prova de que “o Brasil não é para principiantes”, como afirmou Tom Jobim, foi dada pelo Supremo Tribunal Federal em 16 de fevereiro, ao determinar que o governo do Mato Grosso do Sul indenize em R$ 2 mil um preso pelo fato de ele ter sido encarcerado em condições degradantes, como superlotação, falta de higiene ou maus tratos. Os dez ministros que participaram do julgamento concordaram que o Estado deveria compensar o detento; sete votaram pela indenização em dinheiro, enquanto três propuseram redução no tempo da pena proporcional ao número de dias passados na cadeia. Como a decisão tem repercussão geral, pode-se agora esperar uma enxurrada de ações judiciais de presos e ex-detentos buscando ressarcimento.
A situação das prisões brasileiras está muito, mas muito longe da ideal. Apesar de a polícia prender pouco, e não muito como se costuma alegar – afinal, mesmo no mais grave dos crimes, o homicídio, a porcentagem de casos solucionados e de autores condenados é baixíssima, o que estimula a criminalidade –, os detentos já são em número muito maior que a capacidade do sistema prisional, levando à superlotação e todas as mazelas dela decorrentes. Sem falar dos casos de quem, por falha da Justiça ou de quem os defende, já poderia ter deixado as prisões por progressão de regime.
Por mais sedutor que isso possa parecer, o conjunto dos problemas brasileiros não será resolvido com uma canetada
O caos prisional demonstra haver um problema sério, antigo e persistente de gestão, o que não é novidade para ninguém e representa apenas mais uma faceta de um mesmo quadro geral. Mazela que, unida a um sem-número de outras, pode resolver-se única e exclusivamente no âmbito próprio, político-administrativo, em que há quem tenha a incumbência de decidir onde serão alocados recursos que são escassos e limitados – uma ingrata tarefa. Por mais sedutor que isso possa parecer, o conjunto dos problemas brasileiros não será resolvido com uma canetada. É lamentável, portanto, ver um órgão como o STF, do qual se espera amplo discernimento, tomar uma decisão tão equivocada, como se, para restabelecer a justiça social, o dinheiro para essa e as futuras indenizações surgisse do nada, sem que fosse tirado de outras rubricas orçamentárias – quiçá do próprio orçamento previsto para a manutenção das prisões – ou, talvez, do bolso do contribuinte “convidado” a bancar esta extravagância com aumento de impostos.
Para se verificar o absurdo dessa tese, basta levá-la às últimas consequências. Se o Estado falhou com os detentos ao não lhes fornecer condições dignas, também falhou – de forma ainda mais grave, pode-se dizer – com as vítimas de crimes e com as famílias das 60 mil pessoas assassinadas anualmente no Brasil. Falhou com os doentes que veem sua condição se agravar enquanto aguardam por um exame ou uma consulta na rede pública; falhou com os estudantes que saem das escolas públicas diplomados, mas semianalfabetos; falhou com as mães pobres que não têm onde deixar seus filhos enquanto trabalham. O poder público haverá de indenizar todos eles? A sistemática incompetência dos governantes eleitos será resolvida pela distribuição indiscriminada de indenizações?
Não é preciso raciocinar muito para se chegar à conclusão de que estaríamos em uma situação inviável em que os prejudicados estariam pagando a si mesmos, como bem lembraram os advogados Heloísa Caggiano e Bernardo Guimarães, em artigo na Gazeta do Povo. Um círculo vicioso em que mais indenizações exigem mais carga tributária e deixam menos dinheiro para a melhoria dos serviços, que continuarão se deteriorando, por sua vez gerando novas indenizações.
Sim, o poder público, dentro de suas atribuições, tem de zelar pela dignidade dos cidadãos, e isso também inclui os detentos. Mas o dinheiro não é ilimitado e o gestor se vê diante de um típico problema de alocação de recursos. O que a decisão do STF fez foi passar por cima dessa prerrogativa do Poder Executivo, com o Judiciário assumindo o papel de promotor da justiça social sem olhar para o quadro completo. Com isso, ameaça criar uma indústria de indenizações que coloca em risco a própria destinação de verbas para as melhorias do sistema prisional – a maneira perfeita de perpetuar o caos nos presídios.
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