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Editorial

Inflação: o inimigo que nunca desiste

Supermercado
IPCA acumulado nos 12 meses terminados em março de 2021 está acima da banda de tolerância para a meta de inflação. (Foto: Marcelo Andrade/arquivo/Gazeta do Povo)

Em 1963, a inflação brasileira chegou a 80% ao ano (alguns cálculos informam que na realidade teria sido de 64%), depois de ter começado a subir mais expressivamente em 1960 e 1961 e chegado aos 40% em 1962. A revolta contra a inflação ajudou a inflamar as passeatas que antecederam o golpe que depôs João Goulart em 31 de março de 1964. Naquele ano, a inflação atingiu 92% – Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro presidente do regime militar, havia sido empossado em 15 de abril. Posteriormente, o país passou alguns anos combatendo a inflação com relativo êxito, com todos os custos sociais que isso impõe, até que dez anos depois a inflação retornou para 27%, entre outras razões devido à crise mundial do petróleo de 1974; em 1976 os preços subiram 46,3%, e chegaram a 77% em 1979, ano em que tomou posse o último presidente militar, João Figueiredo.

No ano de 1984, a inflação bateu 215,2%. Em março de 1985 assumiu o presidente José Sarney e a inflação ao fim do primeiro ano de seu mandato foi de 242,2%, considerada hiperinflação para padrões mundiais. Com o Plano Cruzado implantado em fevereiro de 1986, congelando preços, salários e a cotação do dólar, a inflação caiu para 79,6% no ano, mas em 1988 já estava de volta bravíssima com seus 980%; no ano seguinte pulou para 1.973% e bateu 1.621% em 1990, primeiro ano do governo Fernando Collor de Mello, que havia assumido em março e implantado logo nos primeiros dias de mandato um plano radical, que incluía bloqueio de depósitos e poupanças. Collor ficou pouco tempo no poder; foi destituído pelo Congresso Nacional no fim de 1992, assumindo o vice-presidente, Itamar Franco, que viu a hiperinflação chegar a 2.477% em 1993 (todos os índices de inflação aqui citados são oficiais, mas podem variar conforme a fonte), até que, com Fernando Henrique Cardoso no ministério da Fazenda, foi montado o Plano Real, implantado em julho de 1994. A partir daí, o Brasil começou a conhecer o que seria viver sem inflação.

A inflação é um mal perigoso e sorrateiro que, ao menor descuido, sai de sua quietude e salta para atacar o organismo econômico e social com todos os estragos que faz

Se levarmos em conta que quem tinha menos de 14 anos em 1994 não conseguia entender a realidade inflacionária, os brasileiros hoje abaixo de 40 anos não têm a experiência de viver e trabalhar sob um sistema de preços no qual a hiperinflação destrói a função da moeda como instrumento de troca, medida de valor e reserva de valor. Sem um sistema de preços que cumpra suas funções, nada mais podia dar certo. Baixos investimentos, elevado desemprego, desconfiança dos agentes econômicos no país, descrédito internacional, falta de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), aumento da pobreza e corrosão diária do poder de compra dos salários são alguns dos elementos dessa tragédia chamada “hiperinflação”.

O estrago que a inflação faz na economia e as consequências sociais, sobretudo aumento da pobreza e aumento das desigualdades, é conhecido e há farta literatura econômica extraída da realidade mundial por onde a inflação passou. A Alemanha viveu o inferno de ver os preços duplicaram a cada três dias em 1923, quatro anos após o fim da Primeira Guerra Mundial. Hungria, Iugoslávia e quase todos os países da América Latina são alguns dos que passaram por hiperinflações e seu rastro de destruição econômica, política e social. O Brasil, se forem separados os poucos anos de inflação baixa desde 1960, viveu pelo menos 34 anos de inflação elevada – de 1961 a 1994 –, e nisso reside uma das causas de, mesmo sendo um país rico de recursos naturais, sermos um país tão pobre, tão atrasado e tão desigual, incapaz de conseguir se desenvolver, eliminar a miséria, reduzir a pobreza e ter renda por habitante equivalente a pelo menos o dobro da atual.

O propósito desse relato é lembrar que inflação é um monstro que nunca morre. Ela pode ser combatida e mantida sobre controle, mas jamais pode ser considerada morta e extirpada da vida social. Agora mesmo, apesar de uma tragédia sanitária que provocou recessão, fechamento de empresas, desemprego, perda de renda, empobrecimento, trancamento das pessoas em casa e queda nas vendas, a inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) chegou a 4,5% em 2020 e subiu para 6,1% no acumulado dos últimos 12 meses terminados em março de 2021. Isso significa que o monstro da inflação ataca mesmo quando parece não haver condições para elevação de preços. Se a demanda nacional (consumo das pessoas, consumo do governo, investimento das empresas, investimento do governo) caiu e foi desorganizada em decorrência da pandemia, não haveria condições para aumentos de preços. Entretanto, o sistema produtivo de bens e serviços de consumo e bens de capital foi desorganizado e enfraquecido, criando problemas de oferta de produtos que fazem a inflação subir.

A taxa acumulada de 6,1% em 12 meses não é nenhuma tragédia, nem o sinal de que vem aí um tempo de inflação elevada. Entretanto, a inflação é um mal perigoso e sorrateiro que, ao menor descuido, sai de sua quietude e salta para atacar o organismo econômico e social com todos os estragos que faz. O Brasil demorou para chegar a uma inflação civilizada, abaixo de 6% ao ano, e muitos acreditam que pequenas variações em torno dessa taxa não são um problema; a questão é que, quando o fenômeno de aumento de preços se insinua, ninguém sabe qual será sua velocidade e até onde irá aumentar.

Embora a prioridade atual seja livrar a nação da pandemia do coronavírus, o que vem depois é a necessidade urgente de reorganizar a economia, refazer a estrutura de oferta de bens e serviços (isso significa recuperar o sistema produtivo e as empresas prejudicadas durante a crise), aumentar o Produto Interno Bruto (PIB), reduzir o desemprego e buscar o crescimento sustentável nos próximos anos. Mas, para isso, é preciso controle da inflação, estabilidade política, melhoria da infraestrutura física, equilíbrio das contas públicas, definição da estrutura tributária (ou se faz a reforma ou se desiste dela de uma vez), além da diminuição das tensões em áreas como política ambiental, política externa e processo eleitoral. Esses são alguns desafios – alguns, não todos – que o Brasil precisa enfrentar e cujas soluções tem de encaminhar, se não quiser seguir estagnado em mais uma década perdida.

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