Um dos maiores sonhos de todo regime totalitário está prestes a se cumprir – não na Coreia do Norte, não na China, não na Venezuela, mas na (supostamente) democrática Inglaterra, onde um homem será julgado pelo que é, literalmente, um “crime de pensamento”. Em novembro, Adam Smith-Connor, pai de família e veterano das Forças Armadas britânicas, comparecerá diante de um tribunal; a acusação? Rezar silenciosamente diante de uma clínica de aborto.
O “silenciosamente”, aqui, serve apenas para acrescentar uma camada adicional de surrealismo a todo o episódio. Afinal, já é suficientemente absurdo que um indivíduo seja impedido de se manifestar publicamente diante de uma clínica de aborto – ou, a rigor, de qualquer outro estabelecimento –, desde que não viole o direito de ir e vir das outras pessoas, que não deprede nem vandalize instalação alguma, que não submeta ninguém a constrangimentos. Se opositores do ex-presidente norte-americano Donald Trump podem se reunir diante da Trump Tower, em Nova York, com todo tipo de cartazes e gritando todo tipo de slogans, por que indivíduos pró-vida não poderiam rezar e se manifestar diante de uma clínica de aborto? Por que, no primeiro caso, estamos diante do mero exercício da liberdade de expressão e manifestação, mas no segundo estaríamos diante de um crime gravíssimo que precisa ser punido pelo braço estatal?
A oração silenciosa de Smith-Connor faz dele uma pessoa extremamente perigosa aos olhos do abortismo; tão perigosa que é preciso oferecer às clínicas de aborto uma proteção legal que nenhum outro tipo de local público tem
Evidentemente, não há resposta racional a essa pergunta, mas os legisladores de algumas cidades britânicas abandonaram a lógica quando estabeleceram “zonas de censura” em torno de clínicas de aborto. Em Bournemouth, onde Smith-Connor cometeu sua “crimideia”, a chamada Ordem de Proteção do Espaço Público está em vigor desde outubro de 2022 e proíbe atos de “desaprovação ou aprovação” – uma tentativa cínica de dar um verniz “democrático” às restrições, que têm como alvo exclusivo o movimento pró-vida, pois entre as ações tornadas ilegais estão “realizar vigílias em que membros rezem em voz alta, recitem as Escrituras, se ajoelhem, aspirjam água benta no chão ou façam o sinal da cruz se percebem que passa um utilizador do serviço” (no caso, o serviço de aborto). Como afirmamos, essa proibição de atos públicos, sem nenhum tipo de violação a direitos alheios, já é suficientemente totalitária; mas Smith-Connor nem isso chegou a fazer. Rezava silenciosamente, de costas para a clínica, e isso bastou para o veterano ser abordado por dois agentes que o questionaram sobre “a natureza de sua oração silenciosa”.
“Não me aproximei de ninguém, não falei com ninguém, não violei a privacidade de ninguém. Eu estava apenas parado em silêncio”, disse Smith-Connor após uma primeira audiência, no último dia 9 de agosto, na qual se declarou inocente das acusações. Mesmo assim, sua oração silenciosa – especialmente a oração pelo filho falecido em um aborto para o qual ele colaborou, ao levar a ex-namorada a uma clínica e pagar pelo serviço – faz dele uma pessoa extremamente perigosa aos olhos do abortismo; tão perigosa que é preciso oferecer às clínicas de aborto uma proteção legal que nenhum outro tipo de local público tem. Pode-se protestar diante de lojas, escritórios de grandes empresas, igrejas, prédios do governo, sedes de partidos políticos, até mesmo de instalações militares, mas diante de clínicas de aborto não se admite nem mesmo uma oração silenciosa, que passaria despercebida a praticamente todos os demais transeuntes que se encontrassem naquele local, naquele momento.
Como já afirmamos neste espaço, em janeiro, este nível de repressão combina grandes doses de autoritarismo com doses igualmente grandes de paranoia e medo. A pretensão de controlar e punir aquilo que vai no íntimo de cada pessoa, negando-lhe até mesmo o direito de uma manifestação silenciosa – que, a bem da verdade, nem “manifestação” é, pois permanece guardada na mente do indivíduo – no caso do aborto, tem em sua raiz a insegurança de quem, no fundo, não tem a certeza moral que diz ter a respeito da “bondade” do ato de eliminar um ser humano indefeso e inocente. Para que essas pessoas não sejam atormentadas pela voz de sua consciência, diante da evidente crueldade do aborto, precisam calar qualquer coisa que possa despertar essa voz – ainda que seja a simples visão de alguém parado na rua. Quando as liberdades de ir e vir, de expressão e religiosa se tornam mero detalhe a ser abolido em nome da hipersensibilidade e da insegurança alheias, o resultado é a concretização das ficções orwellianas.