Na semana seguinte ao afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República, em maio de 2016, o PT embarcou em uma autocrítica de ficção para descobrir o que havia dado errado. A conclusão do partido não poderia ter sido mais reveladora: o PT estava caindo não por causa das pedaladas fiscais de Dilma, nem da recessão causada por suas políticas econômicas, nem por ter elevado a corrupção ao estado da arte, criando o mensalão e o petrolão. O problema do partido, a julgar por resolução aprovada em 17 de maio, foi, basicamente, não ter colocado o cabresto na imprensa, no Ministério Público, na Polícia Federal e nas Forças Armadas – se tivesse feito isso, o impeachment não teria ocorrido.
O boliviano Evo Morales parece ter embarcado em uma autocrítica semelhante, e já decidiu o que fazer caso ele mesmo, ou o seu Movimento ao Socialismo, retorne ao poder na Bolívia. “Se eu voltar, teria de organizar, como na Venezuela, milícias armadas do povo”, afirmou. Não é à toa que Morales se espelha no bolivarianismo do falecido Hugo Chávez e de seu sucessor, Nicolás Maduro. Para se manter no poder, o ditador recorre às forças armadas, às milícias uniformizadas e aos chamados colectivos, grupos paramilitares que atuam à paisana e aterrorizam habitualmente a população venezuelana, sendo responsáveis por várias mortes durante as ondas de protestos contra o governo. Depois de falar em “milícias armadas”, Morales tranquilizou a população: “Não estamos falando de armas, mas algo parecido com estilingues”. Na sexta-feira, com a repercussão negativa de suas palavras, o ex-presidente ensaiou uma retratação em que anuncia sua “convicção mais profunda pela vida e pela paz”, mas insinua que o Estado Democrático de Direito estaria sendo violado na Bolívia. Acredita em Morales quem quiser.
Para os socialistas latino-americanos, as regras democráticas são mero meio de chegar ao poder, sendo descartadas logo que o objetivo principal é atingido
Alguém poderia dizer que Morales até tentou seguir os passos de Maduro, mas caiu porque inverteu a ordem dos fatores. Em 2018, o ditador venezuelano fraudou uma eleição, tornando inválida sua posse em janeiro de 2019 e levando à ascensão de Juan Guaidó como presidente interino. No entanto, como Maduro tem nas mãos todo o aparato de segurança, mantém o poder de fato, deixando Guaidó com a presidência de direito. Morales também tentou fraudar uma eleição na qual nem deveria estar competindo, mas a indignação popular falou mais alto. Sem o apoio dos militares, e sem seus próprios colectivos para assustar os bolivianos e mantê-los em casa, acabou renunciando e fugindo. Assim, o ex-presidente aprendeu a receita dos autoritários: primeiro, garantir a repressão, e só depois promover eleições de fachada com a certeza de que o desfecho lhe será favorável.
Governada interinamente por Jeanine Añez, a Bolívia realizará eleições presidenciais em 3 de maio. Morales não poderá concorrer, mas o seu partido pretende lançar um candidato e deve definir o nome ainda em janeiro. Não se pode subestimar a possibilidade de retorno dos socialistas ao poder – afinal, se não tivesse optado pela fraude que lhe atribuiu uma vitória no primeiro turno, Morales teria chegado ao segundo turno em posição de liderança, com o apoio de mais de 40% dos eleitores. É por isso que ele não viu problema nenhum em falar de “milícias armadas”, na prática ameaçando a sociedade boliviana com a implantação de um corpo repressivo paramilitar.
Aparelhar todas as instituições – especialmente aquelas responsáveis pela segurança –, sufocar a imprensa livre e estimular a formação de unidades à margem do aparato legal de manutenção da ordem são atitudes de quem não tem o menor apreço pela democracia. Para essas pessoas e grupos, as regras democráticas são mero meio de chegar ao poder, sendo descartadas logo que o objetivo principal é atingido. A América Latina tem sido terreno fértil para tais experiências autoritárias – em alguns casos, com sucesso, para desespero da população; em outros, felizmente fracassando antes que se tornassem irreversíveis. A depender dos resultados de maio, a Bolívia se tornará (ou voltará a ser) o novo laboratório desta mentalidade.
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