Os ministros do Supremo podem começar a preparar seus dotes musicais, pois a festinha de sexto aniversário do “inquérito do fim do mundo” está garantida. Em meados de dezembro, o relator (e vítima, investigador, acusador, julgador e o que mais puder ser) Alexandre de Moraes ordenou a prorrogação, por mais 180 dias, do inquérito das fake news, instaurado em 14 de março de 2019 e que se tornou um marco na destruição da liberdade de expressão e de outras garantias democráticas no Brasil, tamanhos os desmandos que foram cometidos dentro dessa investigação e que lhe valeram o apelido dado pelo ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello.
Como precisava de uma justificativa formal para prorrogar mais uma vez algo que já vem se arrastando há mais de cinco anos, Moraes alegou a necessidade de “finalizar as investigações sobre a comprovação da existência, o financiamento e modus operandi do ‘Gabinete do Ódio’, bem como de todos os seus participantes” e determinou o interrogatório de mais 20 pessoas, a “complementação da análise das informações obtidas mediante a quebra de sigilo fiscal e bancário e o término das diversas diligências em andamento na Polícia Federal”. São procedimentos que, a bem da verdade, já deveriam ter sido feitos, especialmente se estiverem relacionados aos tais “fatos e infrações relativas a notícias fraudulentas (fake news) e ameaças veiculadas na internet que têm como alvo a Corte, seus ministros e familiares”, invocados pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, para abrir “de ofício” o inquérito, atropelando o Regimento Interno do Supremo (que só admite esse procedimento em caso de infração penal cometida dentro das dependências da corte) e ignorando a necessidade de sorteio para entregar a Moraes o comando da investigação.
Não há aversão a governante, muito menos “defesa da democracia”, que justifique a tolerância ou o aplauso a tanta arbitrariedade antidemocrática
Era muito improvável que, começando viciado dessa forma, o inquérito fosse colocado nos trilhos por algum movimento de autocontenção, algo a que o Supremo sempre foi refratário. Moraes foi alargando arbitrariamente o escopo do inquérito até que ele e seus “filhotes”, como os inquéritos dos “atos antidemocráticos” e das “milícias digitais”, contivessem praticamente tudo o que fosse da vontade do relator. Até mesmo a oposição das big techs ao PL das Fake News e uma suposta fraude no cartão de vacinação de Jair Bolsonaro e seus familiares acabaram abarcadas pelas investigações relatadas por Moraes, mesmo sem relação alguma com os tais “ataques” que motivaram a abertura do inquérito das fake news.
O alargamento indevido do escopo veio acompanhado de métodos completamente antidemocráticos, tanto na investigação quanto em decisões de Moraes. Um dia após o primeiro “mesversário” do inquérito, o ministro mandou censurar a revista Crusoé e o site O Antagonista por reportagens que não continham nenhum erro factual. Era só o começo, pois esses cinco anos e meio viram também violações da imunidade parlamentar, instauração de “crimes de opinião” e “crimes de cogitação” em conversas privadas de empresários, ataques frequentes à liberdade de expressão por meio da censura e desmonetização de perfis, suspensão de passaportes de jornalistas e formadores de opinião críticos ao Supremo, pesca probatória nos celulares de investigados, e até o banimento de toda uma rede social por mais de um mês. E boa parte disso tudo foi levada a cabo sob um inaceitável sigilo, a ponto de muitos investigados nem sequer saberem por que entraram na mira de Moraes.
Infelizmente, com exceção da reação imediata à censura da Crusoé e O Antagonista, revertida dias depois, parte significativa da opinião pública continuou a defender a atuação do STF, encarando a instauração dos inquéritos como necessária e até meritória, passando a criticá-los apenas quando as investigações começaram a se prolongar indefinidamente ou quando os desmandos ficaram evidentes demais para serem ignorados. Bem sabemos que entre esses há pessoas e instituições de inegáveis credenciais democráticas, o que torna muito difícil entender como elas puderam endossar algo que se mostrava antidemocrático desde o seu início. Não há aversão a governante, muito menos “defesa da democracia”, que justifique a tolerância ou o aplauso a tanta arbitrariedade antidemocrática.
Na decisão que esticou o inquérito das fake news, Moraes fala em “finalizar as investigações” e “complementação da análise”, insinuando que não haverá novas prorrogações. Mas trata-se algo que será preciso ver para crer. Quem julga poder esticar a corda indefinidamente não precisará pensar duas vezes em manter as investigações quando junho chegar. Especialmente quando essa rede de inquéritos está funcionando tão bem como uma espada de Dâmocles pairando sobre a cabeça de tanta gente, criando um ecossistema de medo bastante conveniente para o STF e para seus aliados na política e na opinião pública.