O fim do ano, com as festas natalinas, é época de esperança também nos presídios brasileiros, graças a dois instrumentos que mostram como o arcabouço jurídico nacional pode ser leniente com a criminalidade mesmo na minoria de casos em que o criminoso consegue ser identificado, processado, julgado e condenado. O primeiro deles é a “saidinha”, prevista no artigo 122 da Lei de Execução Penal: uma “folga” de alguns dias para quem cumpre regime semiaberto, em que o detento tem seu monitoramento bastante relaxado e precisa ter a força de vontade para retornar ao cárcere, terminado o período – desnecessário dizer que nem todos retornam, e a cada “saidinha” (que ocorre não apenas no Natal, mas em outras datas comemorativas) há vários relatos de novos crimes cometidos por condenados que se aproveitam da benesse.
Outra facilidade, frequentemente confundida com a “saidinha”, mas bastante diferente dela, é o indulto natalino. Previsto no artigo 84, inciso XII, da Constituição, é o poder que o presidente da República tem de extinguir a pena de um criminoso, colocando-o em liberdade sob certas condições: nem todos os crimes dão a seu autor a possibilidade de receber o indulto, e é preciso ter cumprido parte da pena sob certas condições. Uma vez concedido o indulto, a defesa do preso precisa pedir que a Justiça o liberte – se os critérios estiverem preenchidos, o magistrado não tem muito o que fazer a não ser dar a autorização.
O presidente não é obrigado a conceder indultos natalinos, mas são raríssimos os casos em que isso não ocorre
O presidente não é obrigado a conceder indultos natalinos, mas são raríssimos os casos em que isso não ocorre. E o indulto natalino concedido por Michel Temer em 2017 foi especialmente revoltante, pois relaxou ainda mais as condições para que um detento tenha sua pena extinta. Até o ano passado, ganhava o perdão quem tivesse sido condenado a no máximo 12 anos de prisão e já tivesse cumprido um quarto da pena, no caso dos não reincidentes que cometeram crimes sem violência ou ameaça – na prática, o indulto apagava 75% da pena, o que já é muito. Mas, neste ano, Temer inovou: autores de crimes não violentos que tivessem cumprido apenas um quinto da pena receberiam o indulto, independentemente do tempo de condenação; já os reincidentes precisariam ter cumprido um terço da pena. Até mesmo autores de crimes violentos ou com grave ameaça à vítima estariam elegíveis para o indulto se tivessem cumprido algo entre um terço e metade da pena (ou de metade a dois terços, no caso de reincidentes), dependendo do tempo de condenação. Além disso, a possibilidade de perdão também foi estendida às multas pecuniárias, o que não ocorria até agora.
Segundo o ministro da Justiça, Torquato Jardim, a mudança foi uma “decisão política” do próprio Temer. Uma decisão tão absurda que a Procuradoria-Geral da República foi ao Supremo Tribunal Federal para tentar derrubá-la e, na tarde de quinta-feira, a presidente do STF, ministra Carmen Lúcia, concedeu liminar derrubando alguns trechos do decreto: caiu, por exemplo, a regra que concedia o indulto a condenados por crimes não violentos que tivessem cumprido um quinto da pena, bem como o perdão das penas pecuniárias.
Ainda que se argumente que o indulto não pode ser estendido a condenados por tortura, terrorismo, crimes sexuais, tráfico de drogas ou crimes considerados hediondos (mesmo que tenham sido cometidos sem violência), um detalhe não passou incólume: condenados por corrupção, incluindo pessoas presas na Operação Lava Jato, estavam elegíveis para o indulto natalino assinado por Temer no dia 22 de dezembro. A força-tarefa da Lava Jato e entidades como a Transparência Internacional condenaram veementemente o decreto presidencial por sua excessiva leniência demonstrada para com os responsáveis pela pilhagem dos cofres públicos e das estatais. A preocupação com o que a força-tarefa chamou de “feirão de Natal” já vinha de semanas atrás: em novembro, os procuradores enviaram ao Conselho Nacional de Política Penitenciária e Criminal uma lista de 37 condenados na Lava Jato que cumpririam os requisitos de 2016 para o indulto, e que incluíam o ex-tesoureiro petista Delubio Soares e o pecuarista José Carlos Bumlai.
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Delubio, aliás, teria a chance de se tornar “reincidente” quando o tema é indulto natalino, pois ele já se beneficiou do perdão presidencial em 2015. O decreto assinado por Dilma Rousseff também ajudou outros condenados do mensalão, como João Paulo Cunha. Outro mensaleiro, José Genoino, teve sua pena extinta no início de 2015 com base no indulto de 2014.
“Pratique corrupção e arque com só 20% das consequências – isso quando pagar pelo crime, porque a regra é a impunidade”, havia afirmado o procurador Deltan Dallagnol, ao saber das novas regras para o indulto. O desabafo resume a tragédia brasileira na segurança pública, e que se aplica não só à corrupção: apenas em uma minoria dos crimes os autores são identificados; desses, pequena parte chega a ser detida, processada e condenada; e, quando isso acontece, ainda há diversos meios de escapar do cumprimento integral da pena. Esse ciclo de impunidade em nada ajuda a proteger a sociedade, e ações como o novo indulto natalino de Temer (que ele tinha a opção de não conceder, ressalte-se), mesmo com a intervenção mitigadora do Supremo, só ajudam a sedimentar a triste convicção de que, no Brasil, o crime pode, sim, compensar.
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