O instrumento da intervenção federal, previsto na Constituição de 1988, mas que nunca tinha sido usado até o início deste ano, será colocado em prática mais uma vez. Depois do Rio de Janeiro, que sofre uma intervenção restrita ao campo da segurança pública desde fevereiro, é a vez de Roraima, onde se empregou o pacote completo, inclusive com o afastamento da atual governadora, Suely Campos (PP), substituída por um interventor que ficará subordinado ao presidente Michel Temer – o governador eleito, Antonio Denarium (PSL). O decreto de intervenção foi publicado no Diário Oficial na segunda-feira e tem de ser aprovado no Congresso Nacional.
O estado, um dos mais pobres do país, vive uma situação caótica. A capacidade de pagamento do estado está exaurida, a exemplo do que já havia ocorrido em outros estados mais ricos da Federação. Os salários do funcionalismo estão atrasados, o que levou a protestos de servidores, especialmente na área da segurança pública. Os policiais e bombeiros adotaram a mesma estratégia que tinha sido utilizada no Espírito Santo: para não serem acusados de fazer motim, o que é ilegal, “terceirizaram” a indignação para as respectivas esposas, que “organizam” os bloqueios diante dos quartéis. Os agentes penitenciários também protestam, embora não estejam de braços cruzados. O sistema prisional do estado é afetado por uma guerra entre facções, e a gravidade da situação já era reconhecida pelo governo federal havia meses. Por fim, há a crise humanitária causada pelo fluxo de venezuelanos que fogem de Nicolás Maduro, o ditador socialista que faz seu povo morrer de fome.
Não é normal que, em um ano, um instrumento jamais usado em 30 anos seja empregado duas vezes
Denarium pediu que Temer liberasse R$ 500 milhões por meio de medida provisória para os pagamentos de salários e dívidas da atual administração, mas conseguirá R$ 200 milhões – segundo o senador roraimense Romero Jucá (MDB), líder do governo no Senado, novas liberações dependeriam da adesão de Roraima ao programa de renegociação de dívidas, que daria ao estado uma “folga” de três anos em troca de medidas de ajuste fiscal. E esta é a grande incógnita, pois, em um estado onde a iniciativa privada tem pouquíssima vitalidade e a administração pública é o maior empregador, a economia é movida a dinheiro estatal. Os funcionários públicos são 6,2% da população, a segunda maior proporção do país, segundo dados de 2017 do IBGE – na capital, Boa Vista, o funcionalismo corresponde a quase metade da força de trabalho empregada. Qualquer ajuste fiscal terá de mexer nos vencimentos (por exemplo, suspendendo reajustes) ou na aposentadoria de todas essas pessoas, que não aceitarão mudanças tranquilamente.
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A alta participação do funcionalismo na economia roraimense apenas potencializou a situação que se verifica em vários outros estados do país, onde governantes e governados agem guiados pela fé inquebrantável na geração espontânea de dinheiro. É essa fé irresponsável que leva ao estouro nos gastos, principalmente em relação a contratações e aposentadorias, como demonstrou a Secretaria do Tesouro Nacional em relatório recente. Em alguns casos, as bombas estouram ainda durante a gestão dos mesmos governantes que criaram o problema; em outros, a conta tem de ser paga pelos sucessores. Em nenhum caso, os autores do descalabro são punidos, mesmo que a Lei de Responsabilidade Fiscal tenha sido violada de forma inequívoca. E a própria lei vem sendo abrandada, como ocorreu recentemente no caso dos municípios que sofrem queda súbita de arrecadação.
Um estado sob intervenção por ter se tornado cenário de guerra urbana; outro, porque o dinheiro acabou até mesmo para as tarefas mais básicas. Não é normal que, em um ano, um instrumento jamais usado em 30 anos de existência seja empregado duas vezes. Mas a situação diz mais sobre os alvos das intervenções que sobre o governo federal que as declarou: em um caso, uma política leniente com os bandidos, adotada décadas atrás, degenerou no conflito aberto que vemos hoje; em outro, a irresponsabilidade fiscal cobrou seu preço em um local com extrema dependência das verbas públicas, sem um setor privado que sustente a sociedade.