Por mais de uma década o governo brasileiro se calou sobre o crescente autoritarismo da Venezuela chavista, com o acúmulo de poderes nas mãos do Executivo, as prisões e cassações de políticos da oposição, a perseguição à imprensa livre e outras violações das liberdades democráticas. As exceções eram as afirmações de que o Brasil não interferia em assuntos internos (justificativa que aparentemente não valia quando se tratava do Paraguai ou de Honduras), ou a célebre afirmação do ex-presidente Lula de que na Venezuela havia “democracia em excesso”, referindo-se às sucessivas eleições, plebiscitos e referendos, como se apenas a existência de pleitos regulares bastasse para definir uma democracia.
Por isso é preciso elogiar a nota emitida pelo Itamaraty na terça-feira, dia da posse dos novos deputados eleitos em dezembro. Na ocasião, o povo venezuelano demonstrou sua insatisfação com o chavismo dando à oposição dois terços das cadeiras na Assembleia Nacional, proporção que daria à coalizão Mesa da Unidade Democrática a “maioria qualificada”, que permitiria alterar a Constituição, entre outros poderes adicionais. “O governo brasileiro confia que será plenamente respeitada a vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas. Confia, igualmente, que serão preservadas e respeitadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional venezuelana e de seus membros, eleitos naquele pleito”, afirma um trecho da nota do Ministério das Relações Exteriores.
O Brasil pode e deve se manifestar quando a democracia é ameaçada nos demais países do Mercosul
Esse parágrafo derrubava de uma vez só duas das farsas do ditador Nicolás Maduro – na primeira, ainda em dezembro, ele havia dito que as eleições tinham sido fraudadas; na segunda, tentou atenuar a derrota tirando poderes do Legislativo de várias formas. Maduro e Diosdado Cabello, até há pouco presidente da Assembleia Nacional, instituíram um “Parlamento Comunal Nacional” não previsto pela Constituição, prometendo passar a essa instituição, com 600 membros indicados, poderes dos deputados eleitos. Como se isso não bastasse, o chavismo conseguiu, no subserviente Judiciário venezuelano, a impugnação de alguns deputados da oposição: apenas três, mas o número era suficiente para acabar com a “maioria qualificada” – os candidatos suspensos foram empossados mesmo assim, em uma outra cerimônia realizada na quarta-feira.
Não se pode perder de vista que o texto do Itamaraty também tem um componente de “consumo interno”, pois a linguagem do “respeito às urnas” é exatamente a mesma que vem sendo empregada por Dilma Rousseff para responder às tentativas de impeachment. Um uso indevido, claro: no caso brasileiro, o que está em jogo é o fato de a chefe do Executivo ter cometido crime de responsabilidade que justifica sua remoção, de acordo com as leis do Brasil. Mas pior ainda seria passar um atestado de incoerência pregando o “respeito às urnas” aqui e fechando os olhos ao “tapetão” de Maduro, para citar a expressão usada pelo ministro Jaques Wagner em entrevistas recentes, referindo-se à oposição brasileira.
Como integrante do Mercosul, que tem uma cláusula democrática, o Brasil pode e deve se manifestar quando a democracia é ameaçada nos demais países do bloco. Desde 2012, quando a Venezuela foi admitida no grupo (graças a uma manobra patrocinada por Dilma, pela argentina Cristina Kirchner e pelo uruguaio Pepe Mujica), Hugo Chávez e Maduro fizeram o que bem entenderam sem ouvir um pio de reprovação de Brasília. Que esta nota do Itamaraty marque o início de uma atuação mais consistente da diplomacia brasileira em defesa da recuperação da democracia na América do Sul.
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