Consolidando uma mudança política que começou em março deste ano, o Itamaraty está orientando os diplomatas brasileiros a afirmar que o país entende as menções a “gênero” em documentos internacionais na concepção tradicional de “sexo biológico”. A posição reflete crescentes questionamentos à disseminação da ideologia de gênero em fóruns internacionais, nos últimos 30 anos, e também a inflexão que as urnas ditaram ao rumo do Brasil em vários campos. Ainda assim, nos bastidores, já há quem se prepare para questionar as medidas do Ministério das Relações Exteriores perante o Supremo Tribunal Federal (STF), com base no recente julgamento que criminalizou a “homotransfobia”.
O tema é delicado tanto pela dificuldade que alguns têm de compreender – até cremos que de boa fé – que o combate à ideologia de gênero não significa ser a favor da violência ou da discriminação contra quem quer que seja, quanto pela tentativa de controle judicial da política externa, que envolve discussões técnicas pouco usuais no Brasil. Em relação ao primeiro ponto, é preciso destacar, mais uma vez, que a ideologia de gênero é um conjunto de ideias, sem lastro científico, que busca dissociar por completo a expressão de gênero dos seres humanos de seu substrato biológico. De acordo com essa visão, que surge na obra de feministas radicais no final da década de 1940 e se espalha pelos fóruns internacionais a partir da década de 1980, o desejo e a vontade individuais passam a ser soberanos para definir a “identidade de gênero” dos indivíduos.
Diante desse quadro, é mais que razoável, e plenamente democrático, que um governo eleito possa executar um giro na política externa.
Opor-se a esse conjunto de ideias, como fazem filósofos e cientistas respeitáveis em todo o mundo, não significa, de forma nenhuma, compactuar com a violência, o preconceito e a discriminação contra pessoas transgênero, que devem ser protegidas de acordo com a dignidade inerente a todos os seres humanos. Da mesma maneira, não é possível aceitar a narrativa que ativistas querem vender a qualquer custo: a de que essas ideias seriam o único instrumental possível para orientar políticas de combate à discriminação, especialmente de mulheres, ao redor do mundo. Não é preciso aderir a esta ou aquela visão de “gênero” para condenar violações de direitos de mulheres e meninas em fóruns internacionais, nem para conceber ações para melhorar a vida dessas pessoas. Afinal, entre 1945 e 1995, quando a ONU falava apenas em sexo, e não em gênero, nem por isso deixava de se preocupar com esses temas.
Ocorre que já se argumenta que a decisão do STF que criminalizou a “homotransfobia” entendeu que o conceito de discriminação na Constituição Federal abrange também a população “LGBTI+”, de modo que o novo posicionamento do Itamaraty seria inconstitucional. Essa posição, porém, além de ignorar o que foi exposto acima e as dificuldades próprias do controle de constitucionalidade da política externa, ignora que as linhas mestras da ideologia de gênero nunca foram transformadas em direito internacional. É verdade que o Brasil aderiu com força ao vocabulário de “gênero” no passado, mas nunca houve consenso sobre o tema devido à oposição de vários países.
Diante desse quadro, é mais que razoável, e plenamente democrático, que um governo eleito possa executar um giro na política externa nesse campo. Embora o acórdão do STF ainda não tenha sido publicado e não se saiba com exatidão qual fundamentação, com poder vinculante, o tribunal adotará, é espantoso que um ministro como Celso de Mello, que capitaneou o julgamento, aceite um conjunto de conceitos filosóficos altamente discutíveis como determinante e normativo. Revela um pendor autoritário que alguns grupos já pensem em se mover contra o Itamaraty com base nessa decisão. Mas ainda mais espantoso e autoritário seria se, com base nisso, o STF decidisse manietar as relações exteriores do Brasil.
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