A eleição presidencial de outubro tem tudo para ser um momento ímpar na história brasileira: sob o impacto dos maiores escândalos de corrupção da história e da maior crise econômica das últimas décadas, o brasileiro tem seu voto disputado por candidatos de vários matizes ideológicos e várias visões diferentes de que Brasil sonham para os próximos quatro anos.
Dentro de uma democracia, existem diversas posições perfeitamente legítimas. Cidadãos, políticos e candidatos divergem sobre o tamanho do Estado, sobre em que ramos ele pode atuar e quais deveriam estar a cargo da iniciativa privada, sobre os melhores meios de combater a pobreza, sobre políticas tributárias, sobre como equilibrar as contas públicas, sobre como resolver problemas gravíssimos como a violência urbana e o tráfico de drogas, sobre quais ações afirmativas devem ser tomadas para ajudar minorias (ou mesmo se nenhuma ação nesse sentido deve ser tomada), para citar apenas alguns de tantos outros temas. A sociedade se torna mais rica quando tais diferenças são discutidas em um ambiente de honestidade intelectual e respeito pelo interlocutor e suas ideias, sem falácias ou clichês baratos que desmoralizem esta ou aquela plataforma sem enfrentar o argumento em si.
E, felizmente, o brasileiro tem à sua disposição neste 2018 um grupo bastante numeroso de candidatos que se dispõem a jogar o jogo democrático dentro das regras, com plataformas das quais se pode discordar, mas que são indubitavelmente legítimas: Alvaro Dias, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Jair Bolsonaro, João Amoêdo e Marina Silva, por exemplo, apenas para citar aqueles com desempenho maior que traço nas pesquisas, são exemplos disso. Pode haver um oceano separando suas propostas, mas não se pode dizer que sejam antidemocráticas.
Dentro de uma democracia, existem diversas posições perfeitamente legítimas
Aqui é preciso fazer uma observação quanto a Bolsonaro, cuja “guinada liberal” na economia tem sido criticada por soar artificial. Não vemos nenhuma diferença entre o que o candidato do PSL faz agora e o que foi feito por Lula em 2002, com a “Carta ao povo brasileiro”, em que prometia deixar para trás o radicalismo socialista do PT e abraçar a economia de mercado. Se naquela época a “guinada à direita” de Lula recebeu um voto de confiança, o mesmo critério deveria ser aplicado a Bolsonaro, incluindo-o no rol daqueles candidatos cujas propostas estão dentro daquele espectro que consideramos legítimo.
Dito isso, precisamos deixar claro o que este texto não é: não é, por exemplo, um endosso ou uma crítica a nenhum dos candidatos acima. Também não se trata de afirmar que suas propostas sejam igualmente boas, porque de fato não o são. Há, por exemplo, quem ignore a necessidade urgente de reformas macroeconômicas, ou quem reconheça a grave situação fiscal do país, mas propõe soluções equivocadas. Há quem não queira respeitar a dignidade da vida humana em todos os momentos, da concepção à morte natural; há quem defenda a ideologia de gênero, ou proponha políticas equivocadas de armamento na tentativa de garantir ao cidadão seu direito de defesa. No momento, estamos unicamente avaliando quem se mostra disposto a respeitar a democracia.
A decisão que o eleitor será chamado a fazer traz também grandes riscos. E não exageramos quando dizemos que a própria democracia brasileira corre perigo, a depender do que as urnas consagrarem em outubro – porque é preciso lembrar que a democracia não consiste unicamente na existência do voto popular, mas em vários outros fatores e liberdades que podem estar ameaçados mesmo por um governo eleito pelo povo.
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Há um partido que, há muito tempo, pretende manter as aparências quando na verdade se recusa a jogar o jogo democrático. No poder e fora dele, o Partido dos Trabalhadores já mostrou que, para a legenda, as leis e as instituições só são boas e devem ser obedecidas quando servem aos interesses do partido. Do contrário, podem ser ignoradas, desrespeitadas, aviltadas, desafiadas, depredadas. Durante o julgamento do mensalão, por exemplo, o PT demonstrou seu desprezo pelo Supremo Tribunal Federal ao classificá-lo repetidamente como um “tribunal de exceção” que estaria promovendo um “julgamento político”. Em outras palavras, o partido estava negando legitimidade à suprema corte do país, como faria depois com o Congresso Nacional durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff, classificado até hoje como “golpe”, ou com a própria eleição de 2018, por meio do slogan “eleição sem Lula é fraude” e do desprezo à Lei da Ficha Limpa e à Justiça Eleitoral, com o registro (posteriormente cassado) da candidatura do ex-presidente e atual presidiário.
E como não recordar de todo o circo montado por Lula quando, enfim, a Operação Lava Jato chegou até ele, com as sucessivas condenações e a ordem de prisão expedida em abril? Lula usou a militância como escudo para fazer pouco das decisões judiciais e dos órgãos de segurança; só a frieza firme das autoridades impediu que o desejo secreto da cúpula petista, um confronto aberto que reforçasse a narrativa vitimista, tivesse se tornado realidade. O confronto faz parte do discurso do partido há tempos, com os chamados ao “exército de Stédile” feitos por Lula e a referência a “armas na mão” feita pelo presidente da CUT em pleno palácio do Planalto. A violência, aliás, é arma frequente de ditaduras abjetas como a cubana, a venezuelana e a nicaraguense, todas defendidas com entusiasmo pelo PT.
Um partido que fez da corrupção seu modo de vida é indigno de receber o voto popular
A lembrança do mensalão e da Lava Jato também nos traz à mente o fato de que, em pouco mais de uma década no Planalto, o partido implementou não um, mas dois megaesquemas de corrupção com o objetivo de sangrar o Estado em benefício de um projeto partidário de poder; um verdadeiro atentado contra a democracia, como não se cansaram de dizer magistrados que julgaram o mensalão e o petrolão. Ambos os esquemas têm sido denunciados, investigados e punidos, embora no caso da Lava Jato o trabalho ainda esteja longe de terminar. Ao longo de todo esse tempo, o PT e seus líderes jamais fizeram um mea culpa e admitiram seus erros – pelo contrário: os responsáveis pelos esquemas ainda hoje são saudados como “guerreiros do povo brasileiro”. Um partido que fez da corrupção seu modo de vida a ponto de exaltar seus corruptos condenados, desprezando a lei e as instituições, enquanto não reconhecer seus erros e retificar seus procedimentos, é indigno de receber o voto popular.
É claro que partido nenhum seria tão ingênuo a ponto de consagrar absurdos antidemocráticos em seus programas de governo. Mas o petismo se entrega quando, em seu plano, faz uma crítica ao uso das delações premiadas e dos acordos de leniência, no que seria um “desvirtuamento” das leis, deixando a entender que buscaria modificá-las, com o objetivo não declarado de dificultar o combate à corrupção. Assim como também deixa escapar sua defesa de uma “democratização da mídia”, expressão há muito tempo usada como eufemismo para algum tipo de controle estatal sobre os veículos cuja linha desagrada o petismo. O mesmo é defendido por Guilherme Boulos, que propõe restrições de conteúdo e uma Lei de Meios, termo que remete às medidas autoritárias usadas por Cristina Kirchner na Argentina para combater os veículos que lhe faziam oposição, com a criação de um órgão de “fiscalização” de conteúdos das empresas de radiodifusão.
O eleitor tem diversos critérios para avaliar partidos e candidatos que pedem seu voto: a posição a respeito de temas específicos, o histórico de mandatos anteriores, afinidades ideológicas, competência administrativa e condições de implantar seu programa, ou o envolvimento do político ou da legenda em escândalos. Mas a intenção de jogar o jogo democrático, dentro das regras, precisa ser um primeiro filtro que todo brasileiro esteja disposto a aplicar.