“Assistimos, cotidianamente, o Poder Judiciário ser instado a decidir questões para as quais não dispõe de capacidade institucional (...) Tanto quanto possível, os poderes Legislativo e Executivo devem resolver interna corporis seus próprios conflitos e arcar com as consequências políticas de suas próprias decisões. Imbuído dessa premissa, conclamo os agentes políticos e os atores do sistema de Justiça aqui presentes para darmos um basta na judicialização vulgar e epidêmica de temas e conflitos em que a decisão política deva reinar”, foi o apelo de Luiz Fux quando se tornou presidente do Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2020. Ele se queixava da judicialização da política, prática recorrente no Brasil e que teve novo episódio nas poucas horas em que o senador Renan Calheiros (MDB-AL) se viu impedido de assumir a relatoria da CPI da Covid, instalada nesta terça-feira no Senado.
Tornou-se hábito, na cultura política nacional, que o lado perdedor em disputas internas ou incapaz de fazer valer suas plataformas por ter pouca representatividade acione a Justiça para conseguir o que não foi capaz de obter pelo voto ou pela negociação. A oposição de esquerda é mestra neste expediente, mas desta vez foram políticos ligados ao presidente Jair Bolsonaro que buscaram o Judiciário e, na segunda-feira, véspera da instalação da comissão, conseguiram liminar do juiz Charles Renaud Frazão de Morais, da 2.ª Vara da Justiça Federal de Brasília, proibindo que Calheiros fosse designado relator da CPI. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), chegou a enveredar pelo perigoso caminho do conflito entre poderes quando afirmou que não cumpriria a decisão; antes da sessão inaugural da CPI, no entanto, a liminar foi derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, permitindo que Calheiros se tornasse relator, por designação do presidente eleito da CPI, Omar Aziz (PSD-AM).
Renan Calheiros não tem condições morais de relatar a CPI da Covid. Mas este é assunto que precisaria ter sido resolvido pelos próprios senadores, jamais com uma interferência da Justiça
O recurso à Justiça nestes casos não é ilegal, mas um direito garantido aos atores políticos. O problema não é o jus sperneandi, mas o fato de muitos juízes atenderem prontamente ao choro dos preteridos mesmo que isso signifique interferir no funcionamento de outros poderes, como acabou de ocorrer no caso de Calheiros. Goste-se ou não do senador alagoano – e há muitos motivos para considerá-lo uma péssima escolha para a relatoria –, é questão interna do Congresso a definição dos papéis principais de uma comissão de inquérito. Que Calheiros esteja onde está agora é resultado do jogo político e da combinação de forças no Senado.
Se a maioria dos magistrados, em todas as instâncias, simplesmente rejeitasse pedidos deste tipo, a judicialização da política não encontraria espaço para prosperar. Mas, apesar da queixa de Fux, o próprio Supremo costuma dar o mau exemplo – acabou de fazê-lo, por exemplo, em votação do plenário que obriga o governo a implantar programa de renda básica nacional. Ou quando confirmou decisões de instâncias inferiores que impediram Michel Temer de nomear ministra do Trabalho a deputada Cristiane Brasil. Ainda mais significativo foi o episódio em que Marco Aurélio Mello tentou remover Calheiros da cadeira de presidente do Senado, ameaçando uma potencial crise institucional em que todos cometeram erros grosseiros e que só foi resolvida pela atuação pronta do plenário da corte. São mais raros os casos em que ações são rejeitadas com base na independência dos poderes, como quando Ricardo Lewandowski corretamente recusou pedido da Rede Sustentabilidade – provavelmente o partido campeão do jus sperneandi no STF – para remover o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
Isso não significa, no entanto, que toda e qualquer decisão judicial que afete o funcionamento de outros poderes seja indevida. Quando ocorre, por exemplo, a violação clara de uma regra constitucional, o Judiciário pode ser acionado e deve fazer prevalecer a lei. A própria CPI da Covid é um exemplo, já que estavam preenchidos todos os requisitos exigidos pela Carta Magna para sua instalação e havia vários precedentes demonstrando que não era prerrogativa do presidente do Senado decidir se a comissão deveria ou não existir. Provocado, o Supremo determinou a abertura da CPI, no que foi atendido por Rodrigo Pacheco.
Mas, como afirmamos, o fato de Calheiros ter o direito de relatar a CPI nem de longe significa que ele seja um bom nome; apesar dos dois anos passados como coadjuvante no Senado após a derrota para Davi Alcolumbre, ele não deixou de representar o que há de pior na política nacional, e apenas isso já deveria desqualificá-lo para função tão importante. Há, também, um potencial conflito de interesse que pode surgir ao longo dos trabalhos. Calheiros é pai do governador de Alagoas, Renan Filho, e aliados do Planalto tentam ampliar o escopo da CPI para investigar o eventual mau uso de recursos federais destinados a estados e municípios; o senador já se declarou “parcial” e “impedido” de votar qualquer assunto referente a Alagoas, o que exigirá uma solução ad hoc da parte de Aziz caso surjam indícios de irregularidades naquele estado. Este conflito de interesse, no entanto, apenas acrescenta uma camada a um “conjunto da obra” pelo qual Calheiros jamais deveria ter recebido a relatoria da CPI. Mas este é assunto que precisaria ter sido resolvido pelos próprios senadores, jamais com uma interferência da Justiça.
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