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Editorial

O juiz de garantias e as reais necessidades do Judiciário

Os ministros do STF Luiz Fux e Dias Toffoli. (Foto: Fotos Públicas)

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O Supremo Tribunal Federal retomou esta semana o julgamento sobre a constitucionalidade ou não do dispositivo que cria o “juiz de garantias” – um magistrado que atuaria especificamente na fase de instrução do processo –, previsto no chamado Pacote Anticrime aprovado pelo Congresso em 2019, mas que não entrou em vigor por decisão do próprio STF. A corte irá avaliar especificamente se o Congresso feriu ou não a autonomia organizacional e financeira do Poder Judiciário com a proposta, uma vez que a implementação do juiz de garantias exigiria uma completa reorganização da Justiça criminal do país, alterando normas da organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria.

O argumento usado para sustentar a hipótese de inconstitucionalidade é a de que o projeto aprovado pelo Congresso cria uma regra que, na prática, estabelece dois novos órgãos – juízo das garantias e juízo da instrução – por meio de uma regra de impedimento processual, sem que tivessem sido discutidos os impactos, incluindo os financeiros, ou especificado de que maneira a proposta poderia ser implantada. Sem um estudo prévio aprofundado e sem consultar as instâncias envolvidas, o Legislativo teria simplesmente criado o juiz de garantias, e repassado a responsabilidade de planejar e concretizar a medida para o Judiciário.

Se já tivéssemos uma Justiça funcionando com razoável celeridade e eficiência, seria o caso de dar um passo além, como a instituição do juiz de garantias.

Sem dúvida, a condução do Parlamento neste caso foi apressada e descuidada e não há a mínima condição de se colocar a medida em prática, ao menos rapidamente. Ainda assim, não nos parece que a proposta seja inconstitucional. O artigo 22 da Constituição define que compete privativamente à União legislar sobre direito processual. Por sua vez, o artigo 24 autoriza a União, os estados e o Distrito Federal a legislarem concorrentemente sobre procedimentos em matéria processual, no âmbito do que a competência da União se restringirá ao estabelecimento de normas gerais. No caso do dispositivo que institui o juiz de garantias, o mesmo se deu dentro da Lei 13.964/2019, iniciativa do governo federal que traz uma série de medidas legais que alteram a Legislação Penal e Processual Penal. A ação do Parlamento de instituir o juiz de garantias, portanto, estaria dentro de suas prerrogativas. O que faltou – e ainda falta – são os detalhes de como efetivar a proposta.

As lacunas da proposição podem em parte ser explicadas pela pressa em aprovar a medida. Em 2019, parlamentares do grupo de trabalho que analisavam o Pacote Anticrime apresentado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro, resolveram incluir no texto a figura do “juiz de garantias”: um magistrado que atuaria na fase de instrução do processo – seria ele, por exemplo, quem autorizaria uma interceptação telefônica, ou ordenaria uma busca e apreensão; uma vez aceita a denúncia, o julgamento propriamente dito caberia a outro juiz. Atualmente, na primeira instância, um único juiz atua na investigação, processo e julgamento. A justificativa do projeto seria garantir mais imparcialidade ao julgador. O argumento o é de que quando o juiz controla a investigação, fica inclinado a manter sua posição na sentença final. A mudança passou por uma comissão especial, pelos plenários da Câmara e do Senado, e foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro – tudo muito rapidamente.

O projeto traz uma mudança radical ao atual processo penal, e necessita de alterações muito mais profundas no Código de Processo Penal – o que o texto aprovado pelo Congresso, vago e pouco claro, não contempla.

Segundo a lei aprovada, a mudança deveria entrar em vigor a partir de janeiro de 2020, mas acabou suspensa, inicialmente por 180 dias, por decisão do ministro Dias Toffoli, que mesmo sendo um defensor da proposta, considerou ser necessário mais tempo colocá-la em prática. O ministro do STF argumentou era não “razoável” nem “factível” que todo o Judiciário brasileiro conseguisse implantar o juiz de garantias em apenas 30 dias – o que foi correto, tendo em vista as lacunas do projeto que precisam ser resolvidas. Posteriormente, outro ministro da corte, Luiz Fux, barrou a medida por tempo indeterminado, considerando-a inconstitucional. O tema permaneceu fora do calendário da corte até o último dia 14, quando a discussão foi retomada. Caso o STF decida pela inconstitucionalidade, a legislação aprovada pelo Congresso será considerada nula, o que, como dissemos, não nos parece ser o entendimento mais correto; por outro lado, tampouco se a lei for considerada constitucional há condições de se adotar o dispositivo imediatamente.

O projeto traz uma mudança radical ao atual processo penal, e necessita de alterações muito mais profundas no Código de Processo Penal – o que o texto aprovado pelo Congresso, vago e pouco claro, não contempla. Não há aprofundamento sobre o impacto financeiro, certamente gigantesco, ou como a mudança poderia ser implantada com o quadro atual da magistratura. No caso de comarcas com um único juiz, o que é comum no interior do país, o texto diz apenas que os tribunais deveriam criar um “sistema de rodízio” de magistrados, sem outros detalhes. São muitas, enfim, as lacunas que o texto do Legislativo deixou de responder. O que houve foi praticamente a transposição de um modelo adotado em outros países, sem levar em conta as especificidades do Sistema Judiciário brasileiro, a extensão da medida e suas implicações, como a possibilidade de aumentar ainda mais a já notória morosidade da Justiça.

Hoje, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre a acusação e a sentença se passam em média 3 anos e 10 meses na Justiça estadual, onde tramitam mais de 90% dos casos criminais. Se há recurso, são outros dez meses no tribunal de apelação e mais oito no Superior Tribunal de Justiça, havendo a possibilidade ainda de se recorrer em alguns casos ao STF. Com a instituição do juiz de garantias, esse prazo deve aumentar ainda mais, havendo o risco de o crime prescrever antes de o processo ser concluído ou transitado em julgado, aumentando o número de casos de impunidade, já notórios na Justiça brasileira.

Mudanças que possam trazer aprimoramento ao processo penal são bem-vindas, mas elas precisam nascer de um diagnóstico correto e preciso, que aponte qual é a necessidade mais urgente do Judiciário. Com recursos escassos, é preciso escolher qual problema atacar de forma imediata, e não nos parece que a questão da imparcialidade judicial seja um problema de maior dimensão do que falta de efetividade da Justiça e a sensação de que a impunidade impera em nosso país, que tanto contribuem para o atual descrédito do Sistema Judiciário. Se já tivéssemos uma Justiça funcionando com razoável celeridade e eficiência, seria o caso de dar um passo além, como a instituição do juiz de garantias, mas estamos distante disso. Melhor seria se o Congresso tivesse partido de uma análise profunda e acurada do nosso Judiciário e do processo penal. Certamente encontraria outros pontos muito mais urgentes e necessários para resolver, como maneiras de dar mais agilidade ao processo criminal e diminuir a impunidade. Mas uma vez que a proposta já tramitou e foi sancionada, caberá ao próprio Congresso resolver as lacunas deixadas em aberto e elaborar formas de implantar a medida de forma organizada e gradual, e sem comprometer o funcionamento da Justiça ou, o que seria melhor ainda, reverter tal mudança.

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