A individualização da conduta é princípio básico do Direito Penal: significa que uma pessoa só pode ser acusada e julgada pelos crimes concretos que ela tenha cometido, e que precisam ser devidamente descritos na denúncia. O Código de Processo Penal o explica quando, em seu artigo 41, diz que “a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”. Uma denúncia sem a devida individualização da conduta precisa ser rejeitada por inépcia, como afirmou a ministra Laurita Vaz, do STJ, em 2009, ao determinar o trancamento de uma ação contra uma acusada em um esquema de sonegação fiscal: “A ausência absoluta de elementos individualizados que apontem a relação entre os fatos delituosos e a autoria ofende o princípio constitucional da ampla defesa, tornando, assim, inepta a denúncia”. No entanto, como já se temia e se podia antecipar, este princípio foi jogado na lata do lixo pela Procuradoria-Geral da República e pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no início do julgamento dos réus do 8 de janeiro, nesta quarta-feira.
O subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, responsável pela acusação no julgamento de quatro invasores das sedes dos três poderes, fez pouco do direito ao devido processo legal ao afirmar que “o Ministério Público Federal não tem que descrever a conduta de cada um dos executores do ato criminoso, mas o resultado dos atos praticados pela turba, não sendo necessário descrever quem quebrou uma porta, quem danificou uma janela, ou quem danificou uma obra de arte”, uma afirmação que se choca frontalmente com o artigo 41 do CPP. Para o subprocurador, o que importa é apenas o resultado, e isso legitimaria a “coletivização” da culpa: “Responde pelo resultado a multidão, a turba, aquele grupo de pessoas que mantiveram o vínculo psicológico na busca de estabelecer um governo deslegitimado e inconstitucional”, continuou.
Um bom leitor haverá de identificar no voto de Moraes não apenas o desprezo pela necessidade de individualização da conduta, mas uma antecipação de seu julgamento a respeito de todos os outros réus do 8 de janeiro
Moraes concordou com a tese. No seu voto pela condenação do técnico de saneamento Aécio Pereira, afirmou que “esses crimes são multitudinários, e em crimes dessa natureza a individualização detalhada das condutas encontra barreiras instransponíveis, pela própria característica coletiva da conduta”, acrescentando que “a multidão descreveu uma ação conjunta, na qual passou a destruir bens dos prédios, no intuito de derrubar o governo eleito, pleiteando uma intervenção militar”. Um bom leitor haverá de identificar no voto de Moraes não apenas o desprezo pela necessidade de individualização da conduta, mas uma antecipação de seu julgamento a respeito de todos os mais de mil brasileiros que foram presos, seja na Praça dos Três Poderes, seja no acampamento diante do quartel-general do Exército.
A noção da culpa coletiva está bastante explícita no voto de Moraes, que ainda por cima faz tábula rasa de uma série de nuances. Algumas delas, já as explicamos neste espaço ao tratarmos do “erro de proibição” e do “erro de tipo”; outras, a Defensoria Pública da União fez questão de destacar ao lembrar que havia diferenças enormes de motivação mesmo entre os que efetivamente foram à Praça dos Três Poderes. Um tenente da PM que atuou nas prisões disse que o grupo de invasores tinha pessoas que “categoricamente assumiam que ingressaram no prédio com o intuito de quebrar, e outras apenas para rezar, ou ainda para acompanhar uma manada, ou simplesmente para ver o que ocorreu, ou seja, que as motivações eram as mais diversas”. Um assistente do Gabinete de Segurança Institucional afirmou que “a maior parte dos manifestantes apenas entrou no prédio, mas não faziam nada a não ser tirar fotos ou orar, e uma pequena parte depredava, e outro pequeno grupo tentava impedir a depredação”.
Isso mostra que não há a menor possibilidade de haver justiça ao se proferir condenações “por atacado” por crimes como golpe de Estado ou abolição violenta do Estado Democrático de Direito, sem a análise pormenorizada do que cada um dos acusados fez ou disse. O ministro revisor, Nunes Marques, reconheceu esse fato ao votar pela condenação de Pereira apenas pelos crimes ligados à depredação, afirmando que “os autos não reuniram elementos de convicção suficientes para imposição de decreto condenatório” nas acusações de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
A ironia cruel está no fato de essa discussão ter sido travada durante o julgamento de um réu cuja participação no 8 de janeiro está fartamente documentada, com direito a vídeo feito pelo próprio acusado na Mesa Diretora do Senado, o que daria ao MPF totais condições de oferecer uma denúncia bastante detalhada, de acordo com o que pede o artigo 41 do CPP. Se mesmo em uma situação dessas a acusação defende que não é necessária a individualização da conduta, e o ministro relator acata a tese, que chance poderão ter centenas de brasileiros que ainda serão julgados e contra os quais a única “evidência” que existe é o fato de estarem no local errado, na hora errada e na companhia errada?