Nesta terça-feira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) retoma o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), iniciado na semana passada com as argumentações da acusação, representada pelo PDT, e da defesa. Quando a sessão for retomada, o relator Benedito Gonçalves lerá o seu voto. Se hoje existe uma sensação generalizada de que o ex-presidente será condenado e tornado inelegível, isso se deve mais uma leitura de caráter político que exatamente técnico-jurídico da ação que está sendo julgada na corte eleitoral – exatamente o oposto do que deveria prevalecer em qualquer circunstância, e ainda mais quando há tanto em jogo.
Por mais que a ação impetrada pelo PDT diga respeito única e exclusivamente à reunião que Bolsonaro promoveu em julho de 2022, quando convocou embaixadores de vários países em Brasília para apresentar seus questionamentos (que já eram amplamente conhecidos, aliás) ao sistema de voto eletrônico brasileiro – que, entre outras supostas fragilidades apontadas pelo presidente, não tem uma “garantia” física que permita, por exemplo, uma recontagem. A reunião foi transmitida por meios oficiais de comunicação do governo, como a TV Brasil e perfis governamentais nas mídias sociais. Mas tanto o advogado do PDT quanto os ministros do TSE demonstraram disposição de ir muito além deste fato específico.
A democracia perde quando jurisprudências são revertidas corriqueiramente; quando se abre mão da individualização das condutas, trocando-as por “conjuntos da obra”; quando a análise técnica é substituída pela conveniência oriunda de motivações políticas
Em sua exposição, o advogado do PDT, Walber Agra, até afirmou que não pretendia “imputar responsabilidade por conjunto de obra”, mas foi exatamente isso o que fez ao mencionar um contexto bem mais amplo, que incluía a suposta “minuta do golpe” encontrada na casa do então ministro da Justiça Anderson Torres e os atos de 8 de janeiro. Para Agra, é preciso “impedir que nossa civilização seja atacada novamente por essas hordas”. E a corte compactuou com essa interpretação mais extensiva ao aceitar que a minuta fosse incluída no processo, um procedimento que por si só já demonstra a enorme insegurança jurídica em que os tribunais superiores insistem em lançar o Brasil ao reverter jurisprudências de forma corriqueira. Afinal, foi o próprio TSE, em 2017, ao julgar a chapa formada por Dilma Rousseff e Michel Temer, que decidira proibir o acréscimo de fatos alheios ao objeto da ação quando ela já se encontra em andamento.
É cristalinamente lógico que nenhum ordenamento legal que se considere democrático pode julgar alguém pelo “conjunto da obra”, um conceito que pode servir para conceder honrarias, mas jamais para privar alguém de seus direitos. Julga-se alguém pelos atos concretos cometidos e que podem ser diretamente imputados ao réu, nada mais que isso: o réu realizou ou não a ação específica que se lhe atribui? Tal ato é devidamente descrito na lei como crime ou ilícito? Apenas se a resposta a essas perguntas é “sim”, podemos falar em condenação. O que nos leva à segunda pergunta: a reunião com os embaixadores constitui, de fato, abuso de poder político?
Há algumas questões formais em jogo, como o fato de a reunião ter se dado fora do período eleitoral – no entanto, parece muito improvável que o tribunal se apegue a elas, ainda que quando se trate de outros réus as formalidades importem a ponto de se inventarem erros processuais para beneficiar certos políticos. Resta, portanto, a análise do fato em si. E essa análise prescinde de qualquer opinião que se tenha sobre as afirmações de Bolsonaro aos embaixadores, se verdadeiras ou não, sensatas ou não; o que importa é avaliar se houve aquilo que está na definição própria do abuso de poder político ou econômico: a obtenção de “benefício” para o candidato ou seu partido, nas palavras do artigo 73 da Lei das Eleições (9.504/97) e do artigo 22 da Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990).
E benefício é algo que certamente não ocorreu neste caso, a começar pelo caráter dos interlocutores de Bolsonaro, nenhum dos quais era apto a votar no Brasil. Além disso, as alegações do então presidente já eram amplamente conhecidas, pois Bolsonaro meramente repetira aos embaixadores o que já vinha dizendo havia muito mais tempo, sendo devidamente rebatido à exaustão pela imprensa e pelas autoridades eleitorais, que inclusive foram convidadas para o mesmo evento, tendo se recusado a comparecer – o TSE, aliás, realizou seu próprio evento com diplomatas estrangeiros um mês e meio antes que Bolsonaro o fizesse. Além disso, e novamente ressaltamos que isso nada tem a ver com a veracidade ou sensatez das alegações do ex-presidente, é ilógico pressupor que solicitar mais transparência no processo eleitoral teria como consequência conceder a Bolsonaro qualquer tipo de vantagem em sua disputa contra Lula.
A democracia se fortalece quando cada pessoa é julgada pelo que efetivamente fez, com base no que dizem a lei e os códigos processuais, em respeito à jurisprudência estabelecida – o chamado “império da lei” é uma das notas características do Estado de Direito. Pelo contrário, a democracia perde quando jurisprudências são revertidas corriqueiramente; quando se abre mão da individualização das condutas, trocando-as por “conjuntos da obra”; quando a análise técnica é substituída pela conveniência oriunda de motivações políticas – quando se olham processos “pela capa”, nas palavras do ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello. E ao menos este processo contra Bolsonaro (nada temos a dizer, por enquanto, sobre os outros que ainda poderão ser julgados) não tem os elementos necessários para uma condenação por abuso de poder, muito menos para uma inelegibilidade. Que boa parte da opinião pública esteja se abstendo de fazer a devida avaliação técnica do caso apenas porque o réu em questão é Jair Bolsonaro já é bastante preocupante; que a corte eleitoral se disponha a fazer o mesmo é muito pior, pois, ao sufocar o império da lei sob o voluntarismo judicial, a verdadeira justiça dá lugar a uma vingança que acirra ainda mais as divisões na sociedade brasileira.
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