Um pedido de destaque feito pelo ministro André Mendonça tirou do plenário virtual e levou para as sessões presenciais do STF o julgamento de duas rés do 8 de janeiro. Os dois casos são bastante emblemáticos: o da dona de casa mineira Jupira Silvana da Cruz Rodrigues, 57 anos, e o da agente comunitária baiana Nilma Lacerda Alves, 44 anos. Ambas são mães e avós, foram detidas na Praça dos Três Poderes e liberadas em agosto, depois de passarem absurdos sete meses no presídio feminino da Colmeia. Elas já tinham a condenação assegurada a 14 anos no plenário virtual; o julgamento presencial recomeçará do início, mas é quase impossível que o resultado seja diferente, mostrando que a principal corte de Justiça do país abriu mão de fazer justiça para transformar muitos réus do 8 de janeiro em bodes expiatórios de uma suposta “defesa da democracia”.
Os votos do relator Alexandre de Moraes nos dois casos são bastante eloquentes a respeito desta disposição de ignorar todo e qualquer princípio que garanta os direitos dos réus. Depois de dezenas de páginas copiadas e coladas de outros votos relativos ao 8 de janeiro – especialmente o primeiro, pela condenação de Aécio Lúcio Costa Pereira –, quando chega o momento de se referir especificamente ao que Jupira e Nilma teriam feito, tudo o que o relator consegue oferecer são apenas ilações. Afirma que ambas estavam em Brasília “para participar de atos golpistas visando a extinção do Estado Democrático de Direito”, mas é incapaz de elencar um único elemento concreto que ligue as duas rés a grupos que efetivamente defendiam um golpe de Estado, a não ser sua presença no acampamento diante do QG do Exército. Os testemunhos de policiais e outros membros de forças de segurança citados nos votos mencionam manifestantes de forma genérica, jamais citando Nilma ou Jupira nominalmente. Para defender a condenação por depredação de patrimônio, Moraes cita objetos apreendidos não com as rés, mas com um terceiro sem nenhuma relação com elas. Não há vídeos ou fotos feitos por elas ou em que elas apareçam – no caso de Jupira, a única evidência era uma garrafa de água com seu DNA, encontrada dentro do Planalto –, nem mesmo afirmações das rés que permitissem concluir que havia alguma intenção golpista de sua parte.
O Ministério Público e a maioria dos ministros do Supremo simplesmente abriram mão de proporcionar aos réus a ampla defesa, a presunção de inocência e outras garantias que caracterizam um sistema de Justiça civilizado
Moraes usa abundantemente as expressões “ficou claro” e “está evidenciado” para se referir à culpabilidade de Nilma e Jupira. Mas, se há algo claro e evidente aqui, é que Ministério Público e a maioria dos ministros do Supremo simplesmente abriram mão de proporcionar aos réus a ampla defesa, a presunção de inocência e outras garantias que caracterizam um sistema de Justiça civilizado; no caso do 8 de janeiro, tudo isso se tornou mero empecilho, substituído pelo uso indevido da noção de “crime multitudinário”, como se fosse possível atribuir uma única intenção a um grupo tão numeroso, com características tão distintas e cujas atitudes eram bastante diferentes, como os próprios policiais ouvidos e citados nos votos fizeram questão de afirmar. Da forma como este conceito de “crime multitudinário” vem sendo empregada por Moraes, não exageramos ao dizer que seria possível até mesmo condenar um integrante de torcida organizada que se visse em meio a uma briga de torcidas e apenas estivesse tentando proteger um filho: bastaria estar no lugar errado e nas companhias erradas, com as quais se compartilharia apenas um punhado de convicções difusas (a paixão pelo time, ou o descontentamento com o resultado das eleições), ainda que não uma intenção específica (a de atacar torcedores do time adversário, ou a de dar um golpe de Estado), para ser incluído na “turba” merecedora de condenação.
Sem os elementos concretos, resta aos ministros apenas estabelecer uma associação frágil entre rés e golpistas (que os havia, isso é indubitável), e partir para ilações. Moraes, por exemplo, repele a alegação de que Nilma havia entrado no Planalto apenas para se proteger da confusão do lado de fora, pois ela “porque poderia sair da região do conflito para evitar eventuais consequências do gás que alega ter sido lançado no local”. A afirmação pressupõe que alguém naquela situação teria o tempo e as condições de fazer toda uma análise racional das alternativas à disposição, em vez de buscar imediatamente a primeira opção que lhe parecesse segura.
O 8 de janeiro foi acontecimento de enorme gravidade, e a Gazeta fez questão de afirmá-lo já nas primeiras horas após o caos na Praça dos Três Poderes, defendendo a punição dos responsáveis. O que o Supremo tem feito ao analisar casos como os de Jupira e Nilma, no entanto, não é justiça, mas justiçamento. Votos extensivamente idênticos, sem a devida individualização das condutas; atribuição de intenções golpistas “no atacado”, sem nenhuma consideração às convicções concretas de cada um dos réus; e penas desproporcionais, maiores que as aplicadas para muitos crimes gravíssimos, não servem para dar a cada um o que lhe é devido, mas para fazer dos réus “exemplos” de que o Supremo está “defendendo o Estado de Direito”. A democracia, no entanto, não é defendida com a relativização das garantias constitucionais, muito menos para arruinar as vidas de cidadãos cujo único “crime” comprovado foi o de estarem nos prédios invadidos.
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