Entre as escolhas mais importantes a serem feitas por um presidente da República está a indicação de membros para o Supremo Tribunal Federal. Ministros do STF permanecem na corte até muito depois que o presidente responsável pela indicação deixe o Planalto – Celso de Mello, por exemplo, que chegou ao Supremo durante o mandato de José Sarney e deixa a corte na semana que vem, ainda viu outros sete presidentes da República, incluindo o atual. Quando foi eleito, Jair Bolsonaro já sabia que teria pelo menos duas indicações a fazer. Este era um assunto no qual não havia margem nenhuma para erro. Mas Bolsonaro conseguiu errar.
Qual é o tipo de ministro de que o país precisa? No início deste ano, elencamos um pacote de características essenciais para um magistrado da nossa suprema corte: firmeza contra a corrupção; respeito à vida e à família; ojeriza ao estatismo, priorizando o protagonismo do indivíduo, da sociedade civil e do setor privado; rejeição dos corporativismos; e a consciência plena de que um ministro do Supremo é guardião e intérprete da Constituição, não seu autor. Desta lista, gostaríamos de destacar em especial três aspectos que nos parecem mais relevantes no momento atual.
Praticamente tudo o que se conhece e também o que se ignora a respeito de Kassio Marques mostra que lhe faltam o retrospecto e a clareza de convicções que deveriam estar presentes no escolhido por Bolsonaro
O primeiro deles é o alinhamento com os valores que norteiam a maioria dos brasileiros em temas de comportamento. É bem verdade que o STF não tem a característica de espelhar fielmente a composição da sociedade brasileira; mas, por outro lado, é inconcebível que a totalidade da corte seja de ditos “progressistas” ou que ao menos flertam com o “progressismo”, em uma desproporção que extrapola totalmente qualquer papel contramajoritário que se queira atribuir a uma suprema corte. Negar à posição conservadora o direito de se fazer presente na composição do Supremo é calar a maioria dos brasileiros na instância que, em muitas ocasiões, é mais decisiva que os próprios Executivo ou Legislativo.
A firmeza no combate à corrupção é importantíssima neste momento em que o establishment político – e também o jurídico – coloca em prática o mesmo roteiro visto na Itália da Operação Mãos Limpas, em seu esforço para desacreditar e destruir a Operação Lava Jato, inviabilizando qualquer ação semelhante no futuro. Não se trata, aqui, de simplesmente ser ou não um “garantista” – o termo descreve magistrados que, havendo interpretação da lei que seja favorável ao réu, tenderão a adotá-la em detrimento de outros valores jurídicos, uma postura problemática, mas que ainda pode ser considerada legítima. O problema atual, no Supremo, é outro: são interpretações que, mesmo quando adotadas de boa fé, vão além do “garantismo” ou até mesmo o desvirtuam. É o caso, por exemplo, da anulação recente de decisões de instâncias inferiores tomadas estritamente de acordo com a lei, espalhando insegurança jurídica e facilitando a impunidade. O próximo membro do STF tem de ser alguém com a coragem de interromper esse ciclo.
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- O perigo cada vez maior do ativismo judicial (editorial de 18 de novembro de 2018)
- Luiz Fux à frente do STF e o ativismo judicial (editorial de 11 de setembro de 2020)
Os dois temas – a pauta de costumes e o combate à corrupção – são permeados pelo tema do ativismo judicial. Afinal, tanto para fazer prevalecer posições “progressistas” em matéria de comportamento quanto para reverter sucessos do combate à corrupção, ministros do Supremo têm tomado para si a função de legisladores: inventam ou alteram normas legais a seu bel-prazer, seja monocraticamente, seja com o apoio de colegas de turma ou da corte toda. O ativismo judicial tem lá suas nuances: há ministros que o rejeitam em certos temas, como nas questões morais, mas o adotam em outros, como na regulação estatal ou na liberdade econômica. Mas raro é o ministro que se abstém completamente da postura de legislador – quando seria justamente esse tipo de ministro o mais necessário em uma suprema corte.
Tudo isso se aplica ao desembargador Kassio Marques, do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, confirmado por Bolsonaro na noite de quinta-feira e cuja nomeação foi formalizada no Diário Oficial desta sexta? A resposta é um enfático “não”. A começar pelo fato de Marques ser apadrinhado pelo líder do PP no Senado, Ciro Nogueira – ambos são do Piauí –, um denunciado pela Lava Jato. Acrescente-se a isso o fato de ser uma incógnita na pauta de costumes e de, nos bastidores, ser visto como mais alinhado à postura de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, membros da Segunda Turma do STF cujos votos têm sempre beneficiado os réus da Lava Jato. Praticamente tudo o que se conhece e também o que se ignora a respeito de Kassio Marques mostra que lhe faltam o retrospecto e a clareza de convicções que deveriam estar presentes no escolhido por Bolsonaro – o presidente, aliás, mostrou não ter a menor ideia da importância da tarefa de nomear ministros do STF ao menosprezar currículos, dizendo ter privilegiado alguém que conhecia, que “tomava tubaína” com ele.
Esse tiro no escuro é totalmente desnecessário quando há muitos outros juristas notáveis, que comprovadamente têm as características necessárias a um bom ministro do STF
O fato é que o país foi dormir sonhando com um ministro firme contra a corrupção, que refletisse os valores da maioria da sociedade brasileira, que rejeitasse o ativismo judicial, que defendesse a vida e a família, e acordou com um indicado por um senador do Centrão denunciado na Lava Jato. Não surpreende que o nome tenha repercutido muito mal até mesmo entre os setores que apoiaram Bolsonaro desde a primeira hora e vinham defendendo o presidente em todas as controvérsias nas quais ele se envolveu. A indicação agradou quase que exclusivamente aos novos aliados do presidente no Congresso, aqueles que passaram a lhe oferecer apoio enquanto abocanhavam cargos de segundo e terceiro escalão em ministérios e estatais, e, mais recentemente, também conquistaram várias vice-lideranças do governo no Legislativo.
Marques poderia até ser um bom ministro? Sem dúvida que poderia eventualmente surpreender. Mas sua indicação é, na melhor das hipóteses, um verdadeiro tiro no escuro, totalmente desnecessário quando há muitos outros juristas notáveis, que comprovadamente têm as características necessárias a um bom ministro do STF. Bolsonaro não pode se eximir alegando que terá outra oportunidade em 2021, quando Marco Aurélio Mello se aposentar. Uma única nomeação equivocada pode colocar muito a perder, considerando o papel que o Supremo assumiu no país. Uma indicação ao STF que é uma aposta arriscada na roleta – na melhor das hipóteses, repetimos; porque, na pior delas, será um desastre completo – é a última coisa de que precisamos neste momento, e por isso já é possível classificar a decisão de agora como um dos maiores erros, se não o maior, cometido por Bolsonaro em seu mandato.
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