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Editorial

Nunes Marques dá uma mãozinha aos fichas-sujas

Nunes Marques vota pela prescrição da injúria racial
O ministro do STF Kassio Nunes Marques. (Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF)

“O mais duro ataque que a Lei da Ficha Limpa já sofreu”, nas palavras de seu idealizador, o juiz aposentado Márlon Reis, foi desferido pelo mais novo membro do Supremo Tribunal Federal, Kassio Nunes Marques. Em decisão datada do sábado, dia 19, véspera do início do recesso da corte, o ministro simplesmente derrubou um trecho da legislação para reduzir o período de inelegibilidade de quem tiver sido condenado pelos crimes elencados na lei – um movimento em direção à leniência, e que a Procuradoria-Geral da República (PGR) e movimentos de combate à corrupção já estão tentando reverter.

Quando aprovou a Lei da Ficha Limpa, o legislador foi bem explícito quando estipulou a duração da inelegibilidade: “desde a condenação até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena”. Ou seja, a pessoa, depois de terminar de pagar sua dívida com a sociedade, ainda permaneceria inelegível por mais oito anos. Nunes Marques retalhou o texto, retirando dele a expressão “após o cumprimento da pena”; com isso, a inelegibilidade passaria a durar oito anos, independentemente da pena e do trâmite do processo na Justiça. O recorte atendeu a um pedido do PDT, em Ação Direta de Inconstitucionalidade; o partido argumentava que a regra levaria a uma “inelegibilidade por tempo indeterminado dependente do tempo de tramitação processual”: como a Justiça demora para julgar as ações, empurrando para a frente o início do cumprimento da pena, o corrupto condenado demoraria demais para voltar a ser um “ficha-limpa”, e isso violaria seus direitos constitucionais, segundo o PDT.

Nunes Marques, com sua liminar, altera radicalmente a vontade do Poder Legislativo

Na liminar, Nunes Marques aceita a tese dos advogados do PDT e afirma que a regra que estipula a duração da inelegibilidade, devido à “ausência da previsão de detração (...), faz protrair por prazo indeterminado os efeitos do dispositivo impugnado, em desprestígio ao princípio da proporcionalidade e com sério comprometimento do devido processo legal”. No entanto, se o ministro considera o critério atual desproporcional, conseguiu levar o pêndulo para o extremo oposto, criando, por exemplo, situações em que compensa eleitoralmente a um condenado protelar ao máximo a análise de seus recursos, ou em que, dependendo do tamanho da pena que tem a cumprir, tornar-se “ficha-limpa” antes mesmo de terminar de pagar sua dívida com a sociedade, algo que certamente não estava na mente do legislador.

Se queria encontrar um meio-termo, Nunes Marques poderia ter buscado inspiração no voto de Luiz Fux quando a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa foi discutida pela primeira vez no Supremo, em 2012. Naquela ocasião, Fux foi favorável a manter na lei o tempo de cumprimento da pena, mas sugeriu que o prazo de oito anos fosse descontado do tempo decorrido entre a condenação por colegiado e o trânsito em julgado, oferecendo uma espécie de “compensação” pela lentidão do Judiciário. Esta sugestão específica acabou vencida, prevalecendo a regra original da lei – e o fato de essa discussão ter ocorrido invalida o que Nunes Marques argumenta quando afirma que “os respectivos votos [de 2012] não teriam analisado o ponto aqui suscitado”, referindo-se à constitucionalidade da regra de oito anos após o fim do cumprimento da pena.

Por fim, a liminar de Nunes Marques ainda comete o mesmo erro visto em tantas outras ocasiões no STF, em decisões monocráticas ou colegiadas: a intenção de refazer a lei com os próprios critérios. Está mais que evidente, pela letra da Lei da Ficha Limpa, qual era a intenção dos legisladores: a de manter corruptos longe da vida política pelo período exato da duração da pena acrescido de oito anos. Ainda que o alcance de sua decisão seja limitado a um grupo bem específico de candidatos, aqueles com registro de candidatura ainda pendente na Justiça Eleitoral, Nunes Marques, com sua liminar, altera radicalmente a vontade do Poder Legislativo. É um conjunto de inconsistências tão grande que levou o decano da corte, ministro Marco Aurélio Mello (que, é bom lembrar, já teve sua chance de criar caos às vésperas do recesso do Supremo), a dizer que “o novato inovou muito”.

Marco Aurélio disse que pedirá a Fux, presidente do STF, que convoque uma sessão extraordinária para analisar o caso. Já a PGR quer que Fux atue monocraticamente, usando o poder que o presidente do Supremo tem durante o recesso judiciário. Por mais motivos que haja para se derrubar a liminar de Nunes Marques, esta é uma decisão que Fux haverá de considerar com máximo cuidado, dada a repercussão negativa que ele enfrentou dentro da corte em outubro quando decidiu cassar outra liminar, aquela em que Marco Aurélio soltou um megatraficante do PCC. Um mal-estar que, é preciso dizer, não seria nada necessário se não houvesse tamanho afã de inovar – tanto entre novatos quanto entre veteranos.

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