Na última segunda-feira, dia 17, dois ministros do Tribunal de Contas da União levaram ao limite a desfaçatez no julgamento de um ex-diretor-geral e um ex-primeiro-secretário do Senado. Agaciel Maia, que hoje é deputado distrital em Brasília, e Efraim Moraes, também ex-senador, eram julgados pelo órgão pela contratação de uma empresa de informática a valores muito acima do mercado entre 2005 e 2009, causando à casa legislativa um prejuízo de R$ 13 milhões. Apesar da recomendação da área técnica do TCU pela condenação, ambos acabaram absolvidos graças a uma mudança de posição dos ministros Aroldo Cedraz e Raimundo Carreiro – este último, presidente do TCU.
Quando o julgamento começou, longínquos cinco anos atrás, Cedraz e Carreiro se declararam impedidos – aquele, por ter sido companheiro de partido de Moraes; este, por ter sido secretário-geral da mesa do Senado quando Maia era o diretor-geral. Os demais ministros deram seus votos e construíram um placar provisório de 4 a 3 pela condenação. Na retomada do julgamento, dias atrás, Cedraz perguntou a quantas andava a votação e, ao saber que o resultado era desfavorável aos acusados, resolveu se “desimpedir” e empatar o placar. Na sequência, Carreiro fez o mesmo, livrando Maia e Moraes do ressarcimento do prejuízo milionário e de uma possível inabilitação de oito anos para exercer cargos de confiança. Outros ministros do TCU protestaram e a procuradora-geral de Contas junto ao TCU prometeu recorrer.
O laço entre julgador e réu é suficiente para que cidadão suspeite de favorecimento
O “desimpedimento” pode até ser inédito, mas não é de hoje que julgamentos contam com a participação de quem deles deveria se ausentar – se não por obrigação legal, pelo menos por obrigação moral. Hoje presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli já julgou José Dirceu, seu ex-chefe na Casa Civil, mais de uma vez. No mensalão, mesmo sendo derrotado, Toffoli ajudou a construir o placar que garantiu a Dirceu a análise de embargos infringentes que reduziram sua pena. Na Lava Jato, Toffoli chegou ao ponto de sacar da cartola um habeas corpus “de ofício” que livrou Dirceu da cadeia, onde ele cumpria pena depois de já ter sido condenado na segunda instância.
Outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, também não viu problemas em conceder habeas corpus – em três ocasiões diferentes! – a Jacob Barata Filho, empresário do setor de transporte coletivo, apesar do fato de o ministro ter sido padrinho de casamento da filha de Barata. E os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Luciana Lóssio e Admar Gonzaga julgaram as contas da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, que conseguiu a reeleição em 2014, apesar de ambos terem atuado como advogados na campanha anterior de Dilma, em 2010.
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Os artigos 252 a 256 do Código de Processo Penal e os artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil tratam do impedimento ou suspeição de magistrados. Algumas das situações previstas incluem o fato de o juiz “ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito”; ou “se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles” [das partes]; ou, ainda, “se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes”. É bem provável que, em pelo menos alguns dos casos que mencionamos, efetivamente não se configurem as circunstâncias que ensejariam formalmente o impedimento ou a suspeição. Mas a lei também dá ao magistrado a possibilidade de se declarar impedido por questões de foro íntimo, não necessariamente contempladas nos artigos do CPP ou do CPC.
E, ainda que a legalidade pura e simples não exija que Cedraz, Carreiro, Toffoli, Mendes, Gonzaga ou Luciana Lóssio se abstivessem de participar dos julgamentos, a moralidade o recomendaria fortemente. O tipo de laço existente entre julgador e réu nesses casos, mesmo que indireto, é suficiente para que cidadão suspeite – no sentido comum, não jurídico, da palavra – de um favorecimento motivado por essa relação anterior, especialmente quando se observa que todas as decisões ou votos beneficiaram os acusados.
Quando esse tipo de situação ocorre, as instituições sofrem com um perigoso descrédito – seja o Tribunal de Contas da União, seja o Poder Judiciário. Um desgaste que poderia muito bem ser evitado se os julgadores, em vez de se ater a um legalismo extremo, contemplassem em termos mais amplos a adequação de sua participação em determinados julgamentos. Nestes casos, abster-se não é se omitir diante da missão que a sociedade espera de um juiz ou ministro, mas contribuir para que as decisões emanadas estejam livres de qualquer suspeita.