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“É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional”, disse o então presidente da Transpetro, Sérgio Machado. “Com o Supremo, com tudo”, respondeu o então senador Romero Jucá. “Com tudo, aí parava tudo”, acrescentou o executivo, ao que o parlamentar respondeu: “É. Delimitava onde está, pronto”. A conversa ocorreu em março de 2016, ainda durante o mandato de Dilma Rousseff. O governo Temer veio e passou, mas o sonho de Jucá e Machado está se concretizando. Não na forma de um conluio orquestrado entre os grandes da República, mas a ação simultânea de uma série de atores importantes está, sim, conseguindo “estancar a sangria” – para usar outra expressão célebre deste mesmo diálogo –, ainda que eles não se deem conta disso. A destruição da Operação Lava Jato é uma trama que ocorre em três atos e diz muito sobre o futuro do combate à corrupção no Brasil.
O primeiro ato consiste em simplesmente impedir que a operação dê os resultados desejados, apesar de tudo o que as investigações descobriram sobre a extensa rede de corrupção capitaneada pelo PT em conjunto com outros partidos de sua base aliada para pilhar empresas estatais. Enquanto apenas no Paraná (pois há forças-tarefa da operação em outros estados) foram apresentadas 119 denúncias, com 165 condenados nas duas primeiras instâncias até março de 2020, os envolvidos com prerrogativa de foro podem efetivamente se dizer privilegiados: só em maio de 2018 o STF condenou o primeiro parlamentar acusado de corrupção na Lava Jato, o paranaense Nelson Meurer, falecido em julho deste ano. Depois dele, apenas os ex-parlamentares Geddel Vieira Lima e Aníbal Gomes foram condenados. Por mais que haja uma burocracia adicional que atrasa investigações e processos na Procuradoria-Geral da República e no STF, é inacreditável que, passados seis anos desde o início da Lava Jato, apenas 28 denúncias tenham sido apresentadas pela PGR e quatro ações penais tenham sido julgadas até agora.
E o STF não se contenta em demorar a julgar as (poucas) ações da Lava Jato que lhe dizem respeito: várias decisões equivocadas favoreceram a impunidade e prejudicaram o bom trabalho realizado nas instâncias inferiores. Em março de 2019, o Supremo decidiu fatiar processos, determinando o envio à Justiça Eleitoral de todos os casos em que houvesse investigação sobre caixa dois. Em agosto de 2019, a corte abriu uma caixa de Pandora ao anular a condenação do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine, alegando que ele, um réu delatado, havia entregue suas alegações finais ao mesmo tempo que outros réus que haviam feito a colaboração premiada, mesmo tendo sido comprovado que essa simultaneidade (prevista no Código de Processo Penal, aliás) não prejudicara Bendine. Outras sentenças foram anuladas logo depois e até agora o STF ainda não estabeleceu uma regra que balize o julgamento dos próximos recursos que a corte certamente receberá baseando-se neste precedente.
A ação simultânea de uma série de atores importantes está conseguindo “estancar a sangria” causada pela Lava Jato
Na sequência, em novembro de 2019, veio a famosa decisão que derrubou o início do cumprimento da pena para condenados em segunda instância, uma prática adotada em quase todo o mundo civilizado e que também havia sido a regra no Brasil por muitas décadas, abolida apenas entre 2009 e 2016. Com isso, condenados da Lava Jato que já estavam presos ganharam a liberdade – o mais notório deles foi o ex-presidente Lula. Mais recentemente, ao retirar a delação do ex-ministro Antonio Palocci do processo do Instituto Lula, alegando intenção da parte do então juiz Sergio Moro de gerar “fato político”, a Segunda Turma apresentou o prelúdio de outro julgamento que pode ameaçar mortalmente a Lava Jato: o da suspeição do ex-juiz na condenação de Lula, já que Moro aceitara um cargo de ministro no governo de Jair Bolsonaro. Isso teria como consequência a anulação do julgamento na primeira instância e levaria a uma série de recursos de outros condenados por Moro. Para isso ocorrer, a falácia do post hoc ergo propter hoc (“se A ocorre antes de B, então A é a causa de B”) precisaria ser levada ao extremo: Moro não teria condenado Lula em julho de 2017 por causa das inúmeras provas existentes contra o chefão petista, mas apenas para tirá-lo da disputa pelo Planalto e facilitar a vitória de Bolsonaro, para quem trabalharia como ministro um ano e meio depois. Parece absurdo que um ministro do STF acate tal tese, mas a corte já demonstrou inúmeras vezes que “no Brasil até o passado é incerto”, como diz a frase atribuída ao ex-ministro Pedro Malan.
A suspeição de Moro, aliás, também pode ser inserida no segundo ato do desmonte da Lava Jato: a desmoralização de seus protagonistas. Tanto Moro quanto o coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Paraná, o procurador Deltan Dallagnol, foram envolvidos em um circo midiático iniciado em junho de 2019, com a divulgação de supostas mensagens trocadas entre eles e outros membros da força-tarefa. Sua autenticidade jamais foi comprovada, e uma análise atenta do seu conteúdo não permitiu encontrar ali nenhum tipo de irregularidade, de acordo com inúmeros juristas e até mesmo o então corregedor nacional do Ministério Público à época das primeiras reportagens do site The Intercept Brasil. É curioso notar que Orlando Rochadel só teve de se manifestar sobre as supostas mensagens porque membros do Conselho Nacional do MP se basearam nelas para tentar abrir processos disciplinares contra Dallagnol, ignorando o fato básico de que provas ilícitas não podem jamais ser usadas em prejuízo de ninguém.
Mas nem por isso o CNMP tem sido simpático a Dallagnol, vítima de verdadeira perseguição no órgão: qualquer manifestação sua a respeito do combate à corrupção lhe vale uma série de reclamações, algumas das quais já se tornaram processos disciplinares. O procurador já recebeu uma advertência ao criticar decisões do STF protagonizadas por Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski; tem contra si mais um processo, iniciado após reclamação do senador Renan Calheiros (MDB-AL); e ainda pode ser removido da Lava Jato por “interesse público”, em um pedido da senadora Katia Abreu (PP-TO) cujas bases são, para dizer o mínimo, frágeis – ambos os julgamentos estão temporariamente suspensos pelo STF. Ainda que escape da remoção e receba apenas uma punição leve no caso de Calheiros, o acúmulo de condenações pode prejudicar e até encurtar a carreira de Dallagnol no MPF. Tragicamente, tamanho rigor é via de mão única: afinal, o próprio Gilmar Mendes já se referiu a Dallagnol e outros membros da força-tarefa em termos, estes sim, extremamente ofensivos, e o máximo que lhe ocorreu até hoje foi a condenação ao pagamento de um valor que ele nem mesmo terá de desembolsar, mandando a conta para o contribuinte brasileiro, sem nenhum outro prejuízo a sua carreira de magistrado.
E, uma vez neutralizados os resultados da Lava Jato e desmoralizados os principais responsáveis por colocar tantos corruptos na prisão, resta o ato final: garantir que nada semelhante volte a ocorrer no futuro. Para intimidar procuradores, promotores, policiais e juízes, o Congresso aprovou uma absurda Lei de Abuso de Autoridade; para embaralhar o processo penal e dificultar as delações premiadas, alterou substancialmente o Pacote Anticrime proposto pelo então ministro Moro. O presidente Bolsonaro teve a chance de retificar ambos os textos com seu poder de veto, mas o exerceu timidamente. Mais recentemente, ainda, o Poder Executivo participou de um acordo com o STF e o Tribunal de Contas da União para promover mudanças nos acordos de leniência, excluindo o Ministério Público.
Por fim, há o “fogo amigo” do atual procurador-geral da República, Augusto Aras. Nomeado por Bolsonaro mesmo quando já se conheciam suas críticas a “desvios” da Lava Jato (descritos de maneira muito genérica), mais recentemente Aras passou a uma ofensiva aberta contra a operação, aumentando o tom das críticas e intervindo de forma escancarada, como na briga pela obtenção dos dados levantados pelas investigações. Além disso, ele defende um novo modelo que centraliza as investigações contra corrupção em uma única unidade, desmontando o bem-sucedido modelo de forças-tarefa.
Uma vez neutralizados os resultados da Lava Jato e desmoralizados os principais responsáveis por colocar tantos corruptos na prisão, resta garantir que nada semelhante volte a ocorrer no futuro
Aqui, precisamos fazer uma ressalva importante: não nos cabe julgar intenções, nem insinuar que todas as autoridades mencionadas estejam agindo deliberadamente para favorecer a ladroagem. Bem sabemos que há corruptos e aliados que têm perfeita noção do que estão fazendo, mas também é possível que outros agentes públicos aqui citados, em seus votos ou decisões administrativas, estejam convictos de estarem fazendo o certo ou o melhor. De qualquer forma, independentemente das convicções que os guiem, é inegável que o resultado prático de tudo o que acabamos de descrever é, sim, o enfraquecimento da luta contra a corrupção e o reforço da impunidade, queiram ou não os responsáveis por tais decisões.
Quando afirmamos que o futuro do combate à corrupção no Brasil depende do futuro da Lava Jato, não queremos dizer que só ali se faça um bom trabalho: há inúmeros policiais, procuradores, promotores e juízes Brasil afora dando sua contribuição inestimável para erradicar essa chaga do país, sem que ganhem uma única manchete de jornal. Mas a Lava Jato, por seu alcance, pelos resultados obtidos e pela reação violenta que despertou por parte dos corruptos e seus aliados, se tornou um ícone. Se estamos assistindo a esse contra-ataque, foi apenas porque a Lava Jato chegou aonde chegou.
O “lavajatismo” não pode perdurar, disse recentemente Augusto Aras. Eis outra expressão tão genérica quanto os supostos “abusos” da operação. O que é, afinal, “lavajatismo”? Pois o que temos visto nestes seis anos é o trabalho incansável para descobrir a verdade sobre os fatos e comunicá-los com transparência ao país; o rigor absoluto dentro do que permitem a Constituição e as demais normas legais; e a convicção de que ninguém está acima da lei e de que todos precisam responder pelos ilícitos cometidos. Se esse é o “lavajatismo” que incomoda a tantos, ele não só pode como deve perdurar. Lutemos por ele.