Além da justa indignação daqueles preocupados com o combate à corrupção e com um Judiciário que não mais se vê limitado pelo texto da lei, e do deboche daqueles que protagonizaram os escândalos investigados pela Lava Jato, há um tipo bastante peculiar de reação ao absurdo cometido pelo Tribunal Superior Eleitoral, que impugnou a candidatura de Deltan Dallagnol, tirando-lhe o mandato de deputado federal. Referimo-nos àqueles que até chegam a admitir (com maior ou menor ênfase) o erro na decisão do TSE, já que a Lei da Ficha Limpa torna inelegíveis apenas membros do MP que tenham se desligado durante o andamento de processo administrativo disciplinar, o que não era o caso de Dallagnol, mas insinuam, ou até afirmam explicitamente, que o ex-procurador cavou seu próprio infortúnio.
Este raciocínio é derivado daquela narrativa, tão frequente quanto equivocada, a respeito de supostos “equívocos” ou “abusos” cometidos pela Operação Lava Jato. Fala-se em “criminalização da política”, em lawfare (a manipulação da lei para fins de perseguição política), e em “sanha punitivista”. Abusa-se da falácia do post hoc ergo propter hoc, usando o fato de protagonistas da operação terem assumido cargos políticos – a começar pelo ex-juiz Sergio Moro, que no fim de 2018 aceitou o convite de Jair Bolsonaro para ser ministro da Justiça – como “prova” de que, no fim das contas, toda a operação havia sido montada com finalidade política, para alijar uns e promover outros. Em resumo, nesta linha de pensamento a Lava Jato teria iniciado ou potencializado a desmoralização da lei, e agora torna-se vítima do que ela mesmo fomentou.
A Lava Jato certamente inovou, mas não da forma como seus detratores querem fazer a sociedade acreditar.
Nada, nada mais enganoso que pensar assim, e causa-nos surpresa que esta narrativa dos “abusos”, fomentada pelos adversários (declarados ou dissimulados) da Lava Jato, também conquiste os ouvidos de muita gente bem-intencionada, apoiadora do combate à corrupção e ciente do tamanho do mal que os esquemas engendrados pelo petismo causaram ao país. Este discurso não resiste a uma análise serena do que foi a operação, dos métodos por ela empregados e da forma como suas conquistas foram desmanteladas – e que também é essencial para compreender o pedido de exoneração que se tornou o centro da discussão que levou à perda de mandato de Dallagnol.
O esquema desvendado pela Lava Jato, uma pilhagem de estatais comandada pelo PT em conluio com partidos aliados e empreiteiras, é o maior da história do país, era altamente intrincado e cheio de ramificações. Políticos graúdos lutaram com todas as suas forças para não chegar ao banco dos réus, mas enfim tiveram de pagar por seus crimes como nunca antes havia ocorrido neste país. E não são poucos os que imaginam que, diante de tamanha bandidagem envolvendo os altíssimos escalões do poder, seria impossível ter sucesso no combate à ladroagem sem ultrapassar um pouco os limites da lei, para garantir que não houvesse impunidade. Não foi o que ocorreu, no entanto, até porque ainda estavam frescas na memória as anulações de outras operações como a Satiagraha. A Lava Jato certamente inovou, mas não da forma como seus detratores querem fazer a sociedade acreditar.
A Lava Jato foi a primeira operação anticorrupção de grande vulto, por exemplo, a empregar as delações premiadas, graças à sanção, em 2013, da lei que estabeleceu as regras para esse instrumento. Também empregou amplamente a cooperação com organismos nacionais e internacionais, igualmente com previsão legal, e chamou a atenção especialmente pelo grau quase inédito de transparência e prestação de contas à sociedade, por meio da publicidade total de seus atos, inclusive como meio de mobilizar a opinião pública em torno do combate à corrupção. Nada disso constituía ilegalidade alguma, mas as discordâncias, especialmente em relação aos métodos, é perfeitamente legítima. Assim, a estratégia dos adversários da Lava Jato foi justamente elevar a discordância ao status de “abuso” ou “excesso”, aproveitando-se do fato de que há muitas pessoas bem-intencionadas que, por quaisquer motivos, discordam de algumas das estratégias usadas pela força-tarefa. O circo midiático da “Vaza Jato”, com a publicação de supostas conversas entre procuradores, e deles com o então juiz Moro, ajudou a reforçar a falsa narrativa, ainda que seu conteúdo – caso seja verdadeiro, o que jamais foi possível comprovar – mostrasse um tipo de interlocução que é considerada habitual, como atestaram ministros do Supremo e o corregedor-nacional do Ministério Público.
A reação contra a Lava Jato era prevista, inclusive por Moro e Dallagnol, graças ao exemplo italiano do desmonte da Operação Mãos Limpas, e tinha uma dimensão tripla. Era preciso desfazer os sucessos conseguidos – o que foi feito pela via judicial, anulando-se por mero formalismo processos em que o Código de Processo Penal foi seguido à risca e inventando-se “erros de CEP” para tirar da 13.ª Vara Federal de Curitiba ações que haviam ali permanecido por decisão do próprio Supremo. Além disso, devia-se garantir que operações semelhantes jamais viessem a ocorrer; o Congresso se encarregou disso ao aprovar a Lei de Abuso de Autoridade. Por fim, era preciso desmoralizar e punir os responsáveis pelo combate à corrupção – e, no caso de Dallagnol, o Conselho Nacional do Ministério Público foi fundamental para que isso ocorresse.
O clima atual não foi criado pela Lava Jato, mas apenas por aqueles que desejaram o seu fim e continuam lutando por isso.
Basta observar os PADs nos quais o ex-procurador foi condenado no CNMP para se atestar o seu caráter persecutório. Em ambos, o exercício da liberdade de expressão, direito garantido constitucionalmente e reforçado na Lei Orgânica do Ministério Público, foi transformado em “crime de opinião” – primeiro, nas críticas a decisões do STF que beneficiaram réus da Lava Jato; depois, no alerta sobre o possível retorno de Renan Calheiros à presidência do Senado. A má-fé foi tamanha que, apesar de a Carta Magna vedar expressamente o uso, em prejuízo do réu, de provas obtidas ilegalmente, três membros do conselho pediram a abertura de sindicância contra Dallagnol baseada na “Vaza Jato” e, quando o corregedor acertadamente mandou arquivar o procedimento, dois deles (ambos indicados pela OAB) ainda tentaram desarquivá-lo.
A enxurrada de reclamações disciplinares e pedidos de providências contra o então procurador no CNMP tinha um objetivo claro; a cada nova condenação, a carreira de Dallagnol no MPF ficaria mais e mais inviabilizada, até a demissão. Quem, em sã consciência, diria que ele deveria permanecer no Ministério Público enquanto via, sem poder reagir, a corda sendo colocada em seu pescoço? O pedido de exoneração era a única saída possível, independentemente de qualquer pretensão política futura. O fato de Dallagnol ter deixado o MPF meses antes do fim do prazo exigido pela lei eleitoral para uma desincompatibilização é irrelevante; afinal, ninguém é obrigado a esperar até o minuto final para deixar um cargo que impeça sua candidatura, especialmente quando a permanência neste cargo traz consigo o risco de mais perseguição política.
E com isso voltamos à ideia inicial. Tudo pelo que Dallagnol vem passando ultimamente não se deve a nada que a Lava Jato tenha feito. Não houve “abusos”, nem “excessos”, nem lawfare, mas o uso rigoroso das ferramentas que a lei dá aos investigadores e o recurso a estratégias legítimas, ainda que delas se possa discordar. Não houve “criminalização da política”, mas a criminalização de políticos concretos que cometeram crimes concretos. O clima atual não foi criado pela Lava Jato, mas apenas por aqueles que desejaram o seu fim e continuam lutando por isso. Culpar a vítima por seu próprio infortúnio é um truque barato no qual os brasileiros empenhados no combate à corrupção não podem cair. Recuperar a história e o legado da Lava Jato, sem distorções nem narrativas falsas, é essencial para que não façamos o jogo dos corruptos e seus aliados.
Oportunamente, neste domingo (4) acontecem em todo o país manifestações contra a corrupção e a censura e em apoio ao deputado Deltan Dallagnol. Participar dessa ação é uma maneira de os cidadãos mostrarem que não aceitam o desmonte das ações da Lava Jato e nem as tentativas de criminalizar aqueles que se esforçaram em atuar contra a corrupção em nosso país. O povo já foi às ruas contra a corrupção; é hora de mostrar esse importante apoio mais uma vez.
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