A atuação da Comissão Nacional da Verdade e tantos outros organismos da sociedade civil que se dedicam a tirar das trevas o que escondem os porões da ditadura militar que dominou o Brasil por duas décadas (1964-1985) está fazendo nascer uma nova compreensão sobre o significado e o alcance da Lei da Anistia – dispositivo que neste 28 de agosto completa 35 anos. Ela foi apresentada como resultado de um acordo tácito entre os ditadores e os que combatiam o regime, pelo qual a anistia deveria ser "ampla, geral e irrestrita".

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À época, entendeu-se que a anistia – se levado em consideração apenas o sentido etimológico de esquecimento – deveria proteger de quaisquer punições tanto os que torturaram e assassinaram presos políticos quanto os que, de armas nas mãos, praticaram atos de terrorismo e também deixaram rastros de sangue inocente pelo caminho. Perdoados ambos os lados, imaginava-se que se abririam as portas da reconciliação nacional e se poderia dar início à reconstrução da democracia sem que o passado histórico precisasse ser dolorosamente lembrado a cada instante.

Não há etimologia, no entanto, que seja capaz de apagar o passado. Ele precisa ser conhecido, subir à superfície, não apenas como sinal de respeito à história do país, mas, sobretudo, como fonte de inspiração e de segurança de que não se repetirão aqueles horrores vividos por toda uma geração. Revelações trazidas à tona por inúmeros depoentes perante as comissões da verdade, de lado a lado, são graves o bastante para uma reflexão que vá além da amnésia consentida. Dias atrás, o relato da jornalista Míriam Leitão, presa e torturada apesar de estar grávida, fez ressurgir o choque da sociedade em relação às arbitrariedades cometidas pelo regime militar. Daí a necessidade também de desenvolvermos uma nova compreensão sobre o alcance da Lei da Anistia – diante, especialmente, do senso de injustiça que surge quando se percebe que os torturadores do passado não serão levados a tribunais, nem punidos por seus atos.

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O Supremo Tribunal Federal (STF) já se pronunciou sobre a Lei da Anistia, considerando-a intocável em seu sentido amplo, geral e irrestrito. Mas não se pode desconhecer que há entendimentos destoantes e perfeitamente defensáveis, como lembra o coordenador do Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça em artigo publicado ontem nesta página. Ele lembra o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos a respeito do caráter imprescritível de crimes hediondos cometidos por agentes do Estado – a corte chegou a condenar o Brasil pela não punição desses crimes.

Entretanto, é de se imaginar que reabrir processos (de lado a lado) em pouco ou nada contribuiria para a completa pacificação dos espíritos – talvez muito pelo contrário. A intenção da Lei da Anistia, de fazer o país olhar para a frente e facilitar a restauração da democracia no Brasil, não exclui a necessidade de olhar o passado e compreendê-lo; mas indica que o risco de viver continuamente no passado é perder a perspectiva de que há um país a (re)construir. Não nos custa lembrar, neste sentido, a lição de Nelson Mandela – vítima-símbolo da intolerância do apartheid na África do Sul, país que sofreu com feridas ainda mais profundas que o Brasil. Eleito presidente após penar por quase três décadas nas masmorras brancas, enfrentou os próprios companheiros de luta contra o racismo, preferindo a reconciliação nacional à reabertura dessas mesmas feridas.

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