O documento Retratos da Leitura no Brasil não goza do mesmo status do Censo do IBGE, do índice Firjan ou das infindas tabelas do Ministério da Saúde. Mas deveria. Parte das mazelas culturais do país se encontra destrinchada nas mais de 120 páginas deste documento que desde o início dos anos 2000 vem explicando como e por que o brasileiro lê. E por que deixa de ler. Desconsiderar a força desses números é fazer pouco caso do impacto que as práticas da leitura têm não só na formação do espírito, mas na economia, no combate à violência, na sociabilidade e na consolidação do conhecimento.
É certo que a pesquisa agora na terceira edição não dá conta de todos os desdobramentos do ato de ler. Nem poderia. O levantamento ainda se debate com problemas metodológicos que o fazem ser recebido com dedos por muitos especialistas.
A aplicação de testes com leitores a partir de 5 anos é a principal das escolhas duvidosas de Retratos. O padrão de pesquisas de leitura era consultar escolarizados a partir de 14 anos, idade em que o entrevistado já tem capacidade de escolher entre um gibi um volume da Coleção Vagalume. Não deixa de ser engraçado imaginar o "recenseador" ao pé de uma criança que ainda pede o colo da mãe, perguntando-lhe qual o autor que mais aprecia.
O senão é que ao considerar leitores do chamado ensino básico o Instituto Pró-Livro que assina o projeto incorreu no erro de inflar os índices de leitura, fazendo-os semelhantes aos da Escandinávia. Na edição de 2008, o brasileiro lia 4,7 livros por ano até então a média não ultrapassava 1 livro e uns quebrados. Na edição de 2012, recém-publicada, o número baixa para 4 livros per capita ano. Segundo os organizadores, a queda de 0,7 dígitos em quatro anos teria se dado graças ao aprimoramento da própria pesquisa.
O quanto cada brasileiro lê num ano, contudo, deveria ser entendido como um problema de pouca monta. Nem os franceses conhecidos como os leitores mais aplicados se fiam em tabelas como essa. Há muito, preferem saber dos "livros afetivos", lidos por prazer, tradição e alimento para o imaginário do que de quantidades. Evitam assim que a leitura seja equiparada à média de bifes que cabem aos membros de uma família.
Retratos da Leitura permite perceber as grandes questões da leitura no Brasil. Estão disfarçados nas tabelas, por exemplo, os descaminhos de um país que se formou à margem dos livros, delegando o assunto para a escola, que a seu modo determinou o que deveria ser lido, quando e como, confundindo leitura com estudo, tarefa e palmatória. Nesse cenário, o leitor que faz da leitura um modo de vida beira a excentricidade, inibindo a dimensão pública da leitura. Não é leviano dizer que muitas crianças e adolescentes não se entregam a essa dimensão da vida, a leitura, por falta de ter em que se espelhar. A propósito, nos dados de 2012, os pais perderam para os professores o papel de maiores incentivadores de uma vida com os livros. É de pensar.
Nas entrelinhas de Retratos..., o olhar atento vai encontrar o que se tornou um dos maiores impasses do campo da leitura: a superoferta de equipamentos eletrônicos e a imposição quase institucionalizada do lazer pago faz com que a leitura fique espremida entre os seriados americanos, a estreia de cinema da semana, as mensagens do celular e os apelos do twitter. Retratos... avança nessa seara ao considerar, em coro com os especialistas, que leitura não é só livro. Todas as leituras são legítimas. Mas não se pode incorrer na ingenuidade de considerá-las iguais. Esse embate pode soar uma conversa sobre as nuvens, é verdade. O mundo não vai voltar ao século 18, quando leitores solitários e intensivos pareciam cair das árvores. O que está em jogo, no entanto, são as condições necessárias para que a leitura mereça esse nome. Se não há entrega, reflexão e oralização, o que se tem é nada mais do que uma rendição à hiperatividade.
A maioria dos índices favoráveis à leitura caiu entre a edição de Retratos de 2008 e a de 2012. A dizer: 30% dos entrevistados não gostam de ler e 37% gostam pouco. Só esses dados dariam um plano de governo: "Programa nacional de práticas de leitura". Não é o bicho. Em todas as pesquisas de letramento, o brasileiro demonstra respeito pelos livros e acumula na memória histórias ternas com a leitura. Com um empurrão, estaria aberto a retomá-las.