Já não passa um dia sem que um grupo de parlamentares dê indícios de estar engajado em desmantelar o ambiente investigatório e punitivo do país e, ao mesmo tempo, livrar políticos e empresários investigados na Lava Jato. O mais novo sinal foi dado na Câmara dos Deputados na semana passada, com a tentativa de votar em regime de urgência um projeto que muda a Lei Anticorrupção e prevê anistia de empresários sem a participação do Ministério Público e outros órgãos fiscalizadores nos acordos de leniência com a antiga Controladoria Geral da União, hoje Ministério da Transparência.
Não sem razão, a proposta teve reação imediata de integrantes da força-tarefa da Lava Jato, com o procurador federal Deltan Dallagnol declarando que a operação ficaria “ferida de morte” caso o substitutivo apresentado pelo líder do governo, André Moura (PSC-SE), fosse aprovado. Neste momento, estão em curso grandes negociações de delações premiadas envolvendo dezenas de pessoas – entre elas, cerca de 50 executivos da Odebrecht, incluindo o próprio Marcelo Odebrecht – que devem identificar políticos de diversos partidos envolvidos em desvios de dinheiro público. Mas, caso o substitutivo de Moura seja aprovado, esses procedimentos serão esvaziados, porque as novas regras de acordo de leniência vão prever que os empresários fiquem livres de outras penalidades se optarem por esse instrumento em vez da delação premiada.
O pedido de urgência para mudar as regras do acordo de leniência foi encaminhado por orientação do Planalto
Curiosamente, a tentativa de livrar os empresários é a inversão igualmente condenável de uma tendência lançada quando ficou evidente a participação das maiores empreiteiras do país no esquema do petrolão. Com o argumento de que “o país iria parar” se essas companhias, responsáveis por algumas das maiores obras de infraestrutura do país, fossem punidas, o governo Dilma quis passar a mensagem de que o castigo deveria ser aplicado às pessoas, e não às empresas. Agora, tenta-se mudar a lei para beneficiar justamente as pessoas físicas, que ficariam livres de ações penais e de improbidade, com extinção de punibilidade após o cumprimento do acordo de leniência. Mas o substitutivo também reservou uma benesse às empresas, que poderiam escapar das restrições à participação em licitações.
O que mais chama a atenção nessa história é que o pedido de urgência foi encaminhado por orientação do Palácio do Planalto. Mesmo que se pondere que o pedido foi retirado no mesmo dia, um pouco antes de a força-tarefa da Lava Jato conceder coletiva para criticar a iniciativa, é de se lamentar a tentativa de aprovar sem discussão um projeto cuja consequência direta é minar o combate à corrupção e à impunidade.
O uso da via parlamentar para beneficiar investigados, do qual faz parte também a tentativa de anistia para crimes de caixa dois, remete ao exemplo da Itália da Operação Mãos Limpas. A revista Piauí, em reportagem de maio deste ano, mostrou que, no início de 1993, os parlamentares italianos também estavam temerosos com o desenrolar dos processos e, na tentativa de se salvar, instaram o governo a preparar uma lei que tinha como efeito a descriminalização do financiamento ilegal dos partidos. O que eles não contavam é que, entre a iniciativa e a sua aprovação, existia uma sólida opinião pública que combateu o projeto de forma contundente, tanto na mídia quanto nas ruas. Ao fim, restou ao presidente italiano recuar e, sob a justificativa de que havia problemas de cunho constitucional na proposta, retirá-la de votação.
Reduzir penas como prisão e multas, além de outros tipos de sanções, é uma prerrogativa do poder público quando se pesam os benefícios obtidos com a colaboração de um criminoso, em comparação com seu silêncio. Mas coisa muito diferente é a eliminação completa das punições, para a qual o substitutivo abre brechas. Isso é impunidade pura e simples, ainda mais considerando que órgãos como o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União ficariam alijados do processo de negociação entre as empresas e o Estado. A Lava Jato deu ao Brasil uma chance inédita de passar a limpo as relações entre poder público e iniciativa privada e estabelecer para elas padrões de lisura; não podemos deixar que essa oportunidade seja jogada fora.
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