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Editorial

Brasil, onde humoristas são mais perigosos que ladrões

Justiça paulista também bloqueou R$ 300 mil das contas bancárias do comediante. (Foto: Reprodução Instagram Léo Lins)

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Em que país do mundo uma pessoa pode passar mais tempo na prisão (mais especificamente, dez anos) por contar uma piada que por abandonar um recém-nascido “para ocultar desonra própria” (pena máxima de dois anos), sequestrar alguém (três anos), cometer um furto (quatro anos), empregar trabalho análogo à escravidão (oito anos) ou atentar contra o Estado Democrático de Direito “com emprego de violência ou grave ameaça, (...) impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” (oito anos)? A resposta não é nenhuma distopia totalitária comunista presente ou passada, como a Coreia do Norte, a China, a União Soviética stalinista ou o Camboja do Khmer Vermelho. A resposta é o Brasil de 2023, e a teoria pode ser colocada em prática muito em breve, se o humorista Léo Lins for condenado no processo em que acaba de se tornar réu.

Lins entrou no radar do Ministério Público por fazer piadas com grupos considerados minoritários – os temas incluem escravidão, perseguição religiosa, minorias e pessoas idosas e com deficiências – em seus shows de stand-up comedy, que também são filmados e publicados em seus perfis nas mídias sociais. O MP invocou a Lei 14.532/2023, apelidada de “lei antipiada”, que não só equipara a injúria racial ao racismo, mas ainda afirma que “os crimes previstos nesta lei [no caso, a Lei Antirracismo, 7.716/89] terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”. A denúncia deu o pontapé inicial a uma série de absurdos que desafiam a doutrina, a jurisprudência, as liberdades constitucionais, a lógica e o bom senso.

Doutrina e jurisprudência protegem o animus jocandi a ponto de negar a existência de crime caso não haja nenhum outro animus efetivamente criminoso, mas MP e Justiça ignoraram completamente este fato

Basta uma familiaridade, ainda que pequena, com a redação de textos legislativos em matéria penal para constatar que o artigo 20-A da Lei Antirracismo, ali inserido pela Lei Antipiada, institui não um crime novo, mas uma agravante para outros crimes que já estavam definidos na lei. Em outras palavras, é preciso primeiro averiguar se foram cometidos os crimes da Lei Antirracismo, como negar emprego ou acesso a certos locais, “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro (artigo 2.º-A), ou “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (artigo 20). Só então seria preciso verificar se o crime ocorreu “em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”, para que se aplicasse a agravante. Ao contrário do que ocorre na matemática, aqui a ordem dos fatores importa, mas o MP não hesitou em invertê-la, tratando a piada como crime em si, em vez de agravante; como o ponto de partida de uma ação, em vez de uma circunstância a mais que estivesse presente no cometimento de outro crime.

Além disso, a denúncia ignorou completamente o que a doutrina chama de animus, que podemos traduzir como “intenção”. Existem animi evidentemente criminosos, como o animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi, presente nos crimes contra a honra, assim como também há um animus desumanizador nos crimes de racismo ou preconceitos de outra natureza, quando se nega a alguém um direito ou a própria dignidade intrínseca a todo ser humano. Mas também há outros tipos de animi, como o animus narrandi (a intenção de narrar um fato), o animus corrigendi (a intenção de corrigir alguém) e o animus jocandi (a intenção de brincar ou divertir), que é a chave para analisar bem o caso de Léo Lins.

Doutrina e jurisprudência protegem o animus jocandi a ponto de negar a existência de crime caso não haja nenhum outro animus efetivamente criminoso. É o que faz, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça na primeira de suas teses relativas aos crimes contra a honra, que já citamos aqui em ocasião anterior, mas é preciso recuperar: “para a configuração dos crimes contra a honra, exige-se a demonstração mínima do intento positivo e deliberado de ofender a honra alheia (dolo específico), o denominado animus caluniandi, diffamandi vel injuriandi”. Quando a piada é o meio para levar a cabo uma intenção criminosa – seja caluniar, injuriar, estimular preconceito ou desumanizar –, ela pode e deve ser punida; mas, não havendo esta intenção, ela é mero exercício da liberdade de expressão, e isso se aplica mesmo quando a piada é exagerada, de mau gosto ou insensata.

Tudo isso foi ignorado pelo MP em sua denúncia, e também o foi pela juíza Gina Corrêa quando, em maio, impôs uma série de medidas cautelares a Lins, incluindo restrições a viagens, a remoção de conteúdos em mídias sociais e, o mais absurdo, a censura prévia pela proibição a novas menções aos grupos “ofendidos” nos shows que porventura viessem a ser realizados. A decisão que transforma Lins em réu, além de insistir neste erro, aprofunda ainda mais a censura prévia ao derrubar por 90 dias as contas do humorista no YouTube e no TikTok  – medida claramente inconstitucional, mas que já se tornou corriqueira no país graças ao mau exemplo dado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. Além disso, a juíza impôs multa por descumprimento à decisão de maio, embora não seja possível ainda saber em que exatamente Lins contrariou as determinações feitas naquela ocasião, por causa do segredo de Justiça que envolve o processo.

Ninguém é obrigado a rir das piadas de Léo Lins, e qualquer um que não goste do tipo de humor que ele faz pode se mobilizar, individual ou coletivamente, para manifestar essa rejeição, por exemplo por meio de um boicote. Mas essas serão sempre respostas da sociedade civil, dentro do livre mercado de ideias. Seu caso jamais deveria ser, em um país democrático, motivo para se mobilizar o braço repressor do Estado, muito menos com a possibilidade de se aplicar uma pena totalmente desproporcional em comparação com outros atos listados no Código Penal. O necessário combate ao preconceito não pode ser substituído pelo fim puro e simples da liberdade de expressão em nome da pauta identitária.

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