O padre católico Antonio Carlos dos Santos, da diocese de Nova Friburgo (RJ), acaba de entrar na lista dos ministros religiosos que se tornaram alvo do aparato penal do Estado por falas consideradas homofóbicas. Em 5 de setembro, a promotora Letícia Galliez, do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, ofereceu denúncia contra o sacerdote devido a comentários feitos por ele em uma homilia proferida em abril de 2023 – o enorme intervalo entre o fato e a denúncia, aqui, pode até chamar a atenção, mas não tem influência na persecução penal, já que o crime de racismo (ao qual a homofobia foi equiparada por decisão de 2019 do STF) é imprescritível.
De acordo com a denúncia, o padre Antonio Carlos celebrava missa na capela de um colégio quando “passou a dizer, repetidamente, que o demônio entrava na casa das pessoas de diversas formas para destruir as famílias, sendo uma delas representada pela união de pessoas do mesmo sexo, ‘homem com homem, mulher com mulher’”. A denúncia não permite saber se essas foram as palavras exatas ditas pelo sacerdote, já que o único trecho entre aspas no texto da promotora é o “homem com homem, mulher com mulher”. Mesmo assim, ainda que o padre tenha usado termos ligeiramente diferentes, mas manifestando a mesma ideia, ninguém haverá de negar que se trata de um discurso bastante duro. A pergunta que se deve fazer, no entanto, é: esse tipo de manifestação justifica o emprego da mão punitiva do Estado?
A jurisprudência a respeito do tema discorre em uma linha que, em tese, ampararia o padre Antonio Carlos frente à pretensão do MP fluminense
Durante o julgamento da ADO 26, a ação que terminou com a equiparação da homofobia ao racismo, os ministros estabeleceram uma salvaguarda para o discurso religioso. A tese aprovada afirma que “a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (...) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica”. Em nenhum momento, no entanto, a promotora Letícia Galliez menciona esta proteção; pode-se considerar que ela julgou a menção desnecessária por classificar a fala do padre como “discurso de ódio”, que é justamente a única hipótese em que os ministros afastam a proteção à liberdade religiosa, garantida apenas “desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.
De imediato, já se impõe um problema grave, já que “discurso de ódio” é um conceito que não está devidamente definido no ordenamento jurídico brasileiro, o que por si só abre a possibilidade de arbitrariedades, já que, na falta de amparo legal, “discurso de ódio” pode ser qualquer coisa que desagrade uma vítima, um promotor ou um juiz. No entanto, a jurisprudência a respeito do assunto – poucos casos, recentes – felizmente discorre em uma linha que, em tese, ao tentar traçar algumas distinções mais objetivas, ampararia o padre Antonio Carlos frente à pretensão do MP fluminense.
Em 2016, a Segunda Turma do STF arquivou uma ação penal contra outro padre católico, Jonas Abib, acusado de incitar a discriminação contra religiões afro-brasileiras. Em seu voto vencedor, o relator Edson Fachin recorreu à classificação feita pelo filósofo Norberto Bobbio em um ensaio presente na coletânea Elogio da serenidade e outros escritos morais. Bobbio (um não crente de inclinações à esquerda) afirmava que “para um discurso ser considerado de ódio, ele deve preencher três requisitos: a existência de uma desigualdade entre grupos, uma hierarquização desses grupos (com um sendo considerado superior ao outro) e a defesa de práticas de escravização, exploração ou eliminação do grupo considerado inferior”, como já explicaram os colunistas da Gazeta do Povo Thiago Vieira e Jean Regina. Nem Fachin, nem os outros três ministros que o seguiram encontraram tais elementos no livro de Jonas Abib.
Essa decisão de 2016 serviu como base para que, em agosto deste ano, um juiz de primeira instância no Distrito Federal desse ganho de causa ao pastor norte-americano David Eldridge, que, em um evento evangélico em 2023, afirmou que “todo homossexual tem uma reserva no inferno, toda lésbica tem uma reserva no inferno, todo transgênero tem uma reserva no inferno, todo bissexual tem uma reserva no inferno”. Voltamos a conceder que são termos bastante duros, mas que de fato não se encaixam no critério tríplice de Bobbio para se configurar “discurso de ódio” – e o mesmo vale para a homilia do padre de Nova Friburgo.
No entanto, mais que apoiar-se nessas decisões ainda vacilantes ou nos critérios de Bobbio, o que importa é reafirmar alguns princípios básicos que ajudem a entender quão contrária à ordem democrática tem sido essa atuação de alguns membros do MP contra religiosos.
Se não formos capazes de distinguir entre, de um lado, crítica a comportamentos (por mais dura e eventualmente insensata que possa ser), e, de outro, afirmações que suponham a negação da igual dignidade de todos os homens, como o racismo, a incitação à violência ou, ainda, a atitude de discriminação efetiva (é o caso de negar-se a prestar um serviço de prateleira a alguém em razão de suas escolhas ou inclinações no campo sexual), acabamos com o papel e a força que a liberdade de expressão tem em uma democracia, como garantidora de uma convivência pacíficas entre pessoas com convicções diferentes. Estaremos autorizando a imposição de tabus morais por via legal ou judicial, num retrocesso de séculos, esquecendo-nos de que a ética, o campo das ações livres dos homens, é o tema privilegiado do debate entre pessoas civilizadas, e que o direito à liberdade de expressão protege em especial a exposição de opiniões ou ideias acerca do comportamento humano, por mais absurdas que eventualmente possam ser.
Surpreende que agentes do Estado continuem insistindo em sacrificar a liberdade religiosa no altar de uma vertente particularmente intolerante do identitarismo atual
Além disso, admitir a ação penal contra o padre Antonio Carlos pela crítica a um determinado comportamento, atribuindo-o a uma influência sobrenatural, equivale a transformar o Estado em teólogo, com promotores e juízes pontificando sobre demônios ou sobre o inferno, um papel que evidentemente não lhes cabe. Concorde-se ou não com o sacerdote, por mais chocantes que suas palavras soem – especialmente aos membros da comunidade LGBT –, sua homilia não incitou violência nem discriminação, limitando-se a uma declaração de cunho estritamente religioso.
A esse propósito, é importante, aqui, analisar serenamente afirmações sobre as consequências post mortem, de eternidade, de certos comportamentos, feitas por ministros religiosos, como havia sido o caso do pastor Eldridge. A própria afirmação dessas consequências traz implícito o reconhecimento de toda pessoa como alguém com uma dignidade especial decorrente do fato de ter livre arbítrio e que merece uma exortação para que não faça – segundo as prescrições dessa religião – mau uso dessa dignidade. Não se trata, de maneira nenhuma, da negação dessa dignidade, como acontece no racismo. É o contrário: tal exortação busca o bem da pessoa advertida, ainda que ela discorde do conteúdo dessa advertência. É preciso desconhecer os grandes marcos do pensamento ocidental para não ser capaz de perceber essa diferença. E por isso surpreende que agentes do Estado continuem insistindo em sacrificar a liberdade religiosa no altar de uma vertente particularmente intolerante do identitarismo atual.
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