Se queremos um país onde a democracia tenha mais vigor em 2017, é preciso olhar para as lições de 2016. O impeachment de Dilma Rousseff e a Operação Lava Jato mostraram que as gambiarras orçamentárias e a sangria da máquina do Estado não mais passarão impunes. Por outro lado, os últimos embates entre o STF e o Senado colocaram o país perto de uma crise institucional sem precedentes. Mas, além dos acontecimentos envolvendo as grandes figuras da República, há lições valiosas a extrair de fatos bem mais próximos, como as invasões de escolas e universidades. Se vemos a necessidade de voltar a esse tema, é porque alguns aspectos desse movimento intrinsecamente ligados à compreensão de democracia ainda não foram entendidos por todos.
A maior parte da sociedade compreende o grande dano causado por protestos desse tipo e repudiou as invasões. Também a comunidade escolar, em várias instituições, rechaçou a invasão como método, mesmo tendo posições contrárias à MP do ensino médio ou à PEC do Teto. Mais que em considerações práticas – e válidas –, como o prejuízo com dias de aula perdidos, o ideal é que tal rejeição tenha se baseado na convicção de que numa democracia ninguém, isoladamente ou em grupo, pode impor na marra as próprias vontades e ideias sobre os demais, por mais nobres que sejam. Não se recorre à força para tolher direitos dos outros. Esta ideia é basilar para uma autêntica cultura democrática.
Não podemos deixar aberto um flanco para o autoritarismo disfarçado de “respeito à maioria”
Mas existe uma outra noção importante, que se refere ao alcance da vontade da maioria. Ela é um componente essencial da democracia, e convencionou-se chamá-lo de “princípio majoritário”. É ele, por exemplo, que concede legitimidade aos governantes, escolhidos pela maioria do voto de toda a população de um município, estado ou país. A segunda maneira ordinária de colocar em ação o princípio majoritário se verifica quando, via representação, os membros do Legislativo escolhidos pelo povo elaboram leis. E, excepcionalmente, a totalidade da população também é chamada a se pronunciar em plebiscitos ou referendos.
Seria um equívoco, no entanto, associar a democracia única e exclusivamente à aplicação do princípio majoritário. A própria noção de dignidade humana coloca um limite à vontade da maioria: ela não pode, jamais, avançar sobre direitos fundamentais e inalienáveis. Do contrário, já não estaríamos em uma verdadeira democracia, e sim em uma “ditadura da maioria” que aceitaria a retirada desses direitos, com prejuízos incalculáveis. É por respeito aos direitos fundamentais do cidadão, por exemplo, que os habitantes de uma cidade nunca poderiam se reunir e impedir a instalação de um estabelecimento comercial como uma padaria ou uma loja de roupas. Nem seria aceitável que trabalhadores de uma empresa decidissem “isolar” um empregado cuja posição ideológica, embora legítima, destoasse da maioria, até que ele resolvesse pedir demissão ou até que o empregador o mandasse embora em nome da manutenção de um ambiente de cooperação. Tais decisões violariam direitos fundamentais à livre iniciativa e de exercer uma atividade profissional.
Isso nos traz de volta às invasões. Quando o Prédio Histórico da UFPR foi invadido, por exemplo, um grupo de alunos emitiu nota de protesto reclamando não tanto do ato em si (pois esse grupo era favorável a uma invasão), mas do fato de ele ter ocorrido antes da assembleia que deliberaria sobre o tema, como se a eventual aprovação tivesse o poder de legitimar o protesto. Uma noção triplamente equivocada. Primeiro, porque a própria natureza da invasão já era antidemocrática, por se tratar de uma imposição de plataformas pela força. O segundo erro é pretender aplicar o princípio majoritário a maiorias circunstanciais (como uma reunião ou assembleia), quando ele se refere à totalidade da população. E, por fim, porque nem mesmo se toda a população desse um voto formal de apoio às invasões seria aceitável a restrição aos direitos de estudantes, professores e funcionários.
Se aceitarmos que direitos inalienáveis sejam limitados ou até suprimidos pela mera vontade da maioria reunida em assembleia ou em votação geral, estaremos deixando aberto um flanco para o autoritarismo disfarçado de “respeito à maioria”. Esta é uma lição que vale a pena consolidar em 2017.
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