Foi mais próprio dos regimes stalinistas o esforço para apagar da história pessoas ou episódios que não serviam aos seus propósitos. Fotografias eram alteradas ora para fazer desaparecer personagens, ora para representá-los em lugares onde não estavam. O esforço, porém, foi em vão. Nem a história mudou seu curso, nem os personagens proscritos perderam sua importância, para o bem ou para o mal, como participantes do processo de construção dessa história. As tentativas frustradas de burla serviram tão somente para que os pósteros até melhor compreendessem o caráter dos acontecimentos, as intenções subjacentes que inspiravam os mandantes da ocasião. História é para ser lembrada, nunca esquecida. Ela é a alma de uma nação, conformadora da personalidade e dos sentimentos de um povo.
Esta breve introdução vem a propósito de uma discussão que se trava neste momento no Brasil. Às vezes surdo, às vezes marcado por estrepitoso radicalismo, o debate versa sobre como devemos encarar e que lições ainda hoje podemos tirar de um pedaço marcante da história recente do país o período do regime militar que assomou o poder a partir de 1964 e que, ao longo os seus 21 anos, produziu mortes, sangue, supressão de liberdades, sofrimento. Já se tentou apagar da nossa história esta parte. Ou melhor, com a Lei da Anistia, de 1979, julgou-se que, sendo ela "ampla, geral e irrestrita", não só os participantes que se confrontaram como inimigos nesse período deveriam ser perdoados uns pelos outros como até os próprios acontecimentos deveriam ser lançados no limbo do esquecimento.
Há, porém, quem julgue que não: a anistia não deveria nem ser geral e muito menos irrestrita. E que ainda há justiça a ser feita. O que implica em identificar culpados, julgá-los, criminalizá-los e condená-los. Há, todavia, os que acreditam que o melhor é não revirar o baú de guardados e fazer de conta que nada aconteceu em nome da paz e em respeito à própria raiz da palavra anistia do latim amnestia, ou esquecimento.
Este é, basicamente, o teor do debate entre duas correntes incrustadas no governo, envolvidas na formulação do novo Plano Nacional de Direitos Humanos um conjunto de políticas para a área que o presidente Lula pretende assinar no próximo dia 9 de dezembro, véspera de mais um aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Representando as duas visões distintas, estão dois ministros, de um lado o de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, de outro o da Defesa, Nelson Jobim.
A questão central que se põe, no entanto, no nosso entendimento, não deve ser nem a do total esquecimento dos fatos cruéis que marcaram o tempo (como pensa Jobim) e nem a da tentativa, passados já 30 anos da Lei da Anistia, de caçar culpados e levá-los aos tribunais (como quer Vannuchi). Não convém cobrir o passado com brumas espessas para fingir hipocritamente que ele não existiu, mas também não é prudente nem sensato levantá-las ao ponto de fazer ressurgir o ressentimento e o desejo de vingança.
Uma comissão prevista no esboço do Plano Nacional de Direitos Humanos teria a incumbência de adotar uma destas visões e de colocá-las em prática. Se atendida a opinião de Vannuchi, ele próprio vítima de perseguição, prisão e tortura durante o regime militar, competiria à comissão, à qual se quer dar o nome de Comissão da Verdade e Justiça, localizar corpos, elucidar casos e punir mandantes e responsáveis diretos por crimes de violação dos direitos humanos opinião que reflete o teor de documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Ex-ministro da Justiça, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e atualmente ministro da Defesa, portanto chefe das três forças militares, Nelson Jobim teme pelos resultados de tal política. Seria, segundo ele, a oportunidade para criar-se indesejável clima de revanche que atingiria não apenas os militares que participaram dos confrontos havidos nos anos de chumbo, mas as próprias instituições que compõem as Forças Armadas. Um perigo que ele acredita deve ser evitado a todo custo. Porque o clima de revanche seria inevitavelmente estendido ao outro lado o lado dos civis que, em luta contra o regime, também perpetrou violações contra a vida e os direitos humanos.
Sim, que se abram os arquivos, que se recomponham os registros históricos, que se esclareçam os desaparecimentos, que se busquem corpos, que se dê sepultura digna aos encontrados. São os fatos e são as consequências justas e necessárias que deles decorrem. Cumprir-se-á assim a primeira parte a que se propõe a Comissão da Verdade e Justiça. Mas reativar processos encerrados com a Anistia poderá comprometer a segunda parte, pois não se fará justiça se só um dos lados for levado ao banco dos réus. Mais: comprometer-se-á o que o Brasil conseguiu de melhor a reconciliação nacional, ao contrário do que ocorreu em muitos outros países.
E não há prova mais evidente e mais nobre de que soubemos construir a reconciliação e a paz, ainda que não tenhamos sepultado a lembrança dos anos tristes, do que ver hoje na chefia suprema da Nação alguém que sofreu suas agruras.
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