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Editorial

Castigo sem crime

A ex-juíza Ludmila Grilo, que vive nos Estados Unidos e teve suas contas bancárias bloqueadas no Brasil. (Foto: Reprodução redes sociais)

Na semana passada, a ex-juíza Ludmila Lins Grilo anunciou que suas contas bancárias no Brasil teriam sido bloqueadas por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal – a informação foi divulgada em uma live em seu canal do YouTube, que só teve como ser assistida por brasileiros que usam serviços de VPN, já que o acesso convencional aos perfis da ex-magistrada também está vetado por ordem do STF. À Gazeta do Povo, Ludmila ainda disse que seu advogado nem teria sido informado da decisão; segundo seu relato, foi a gerente do banco onde ela mantinha conta quem a teria informado sobre o bloqueio e a procedência da decisão judicial.

Ludmila foi aposentada compulsoriamente pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, e respondia a processos disciplinares no Conselho Nacional de Justiça, supostamente por ter violado normas da Lei Orgânica da Magistratura, como a que proíbe juízes de se manifestar sobre processos em curso, seus ou de outros – Ludmila era uma das vozes mais críticas aos inquéritos abusivos conduzidos pelo STF, como o das “fake news” e o das “milícias digitais”. Além disso, no início deste ano ela revelou estar vivendo nos Estados Unidos desde 2022, mesmo ainda estando à frente da Vara de Infância e Juventude de Unaí (MG) – seu afastamento pelo CNJ se deu em fevereiro de 2023. Independentemente dessas circunstâncias, que não é nosso objetivo no momento avaliar, o fato é que há uma enorme desproporcionalidade em inúmeras medidas que vêm sendo aplicadas, não apenas no caso de Ludmila, mas também no de várias outras pessoas, sempre no âmbito dos inquéritos abusivos e sigilosos do Supremo.

Medidas desproporcionais, que violam direitos básicos de cidadãos, tomadas sem motivo razoável que as justifiquem, não merecem outra qualificação que não seja a de arbítrio puro e simples

A ex-magistrada nem de longe seria a única a ter suas movimentações bancárias no Brasil bloqueadas. Jornalistas e formadores de opinião como Rodrigo Constantino – colunista da Gazeta – e Paulo Figueiredo Filho já foram alvo da mesma medida; em um outro caso, Alexandre de Moraes também chegou ao ponto de ordenar, por duas vezes, o bloqueio das contas da filha adolescente de Oswaldo Eustáquio, que tem contra si ordem de prisão e se encontra na Espanha. O que salta aos olhos, nestes casos, é a falta completa de nexo entre as medidas e os supostos crimes “contra a democracia” pelos quais todas essas pessoas estariam sendo investigadas – isso quando se sabe pelo que são investigadas, dado o caráter sigiloso dos inquéritos.

Até mesmo os empresários investigados pelo “crime de opinião do WhatsApp”, assim como dezenas de outras pessoas físicas ou jurídicas que supostamente financiaram protestos e manifestações, já tiveram suas contas desbloqueadas; se eles, que têm um poderio econômico muito maior, podem movimentar livremente seus recursos, não há motivo para seguir restringindo esse direito a quem jamais teria como bancar ataques ao Estado Democrático de Direito. Além disso, no caso específico de Ludmila Grilo, o bloqueio a impediria de receber sua aposentadoria, o que, na prática, constitui um confisco que priva a ex-magistrada de valores essenciais para sua manutenção, algo que nem mesmo juízes condenados por corrupção chegaram a sofrer.

Ao bloqueio de contas bancárias soma-se, ainda, a já corriqueira derrubada de perfis em mídias sociais, que configura aquele tipo de censura prévia vedado expressamente pela Constituição e que deixa os cidadãos sujeitos a terem acesso apenas àquilo que o STF permite, como bem apontou Ludmila. Em outros casos, a Justiça já ordenou o cancelamento de passaportes, deixando brasileiros como Constantino e Figueiredo “prisioneiros” nos Estados Unidos, onde também estão radicados. Tudo isso, recorde-se, sem que haja qualquer justificativa convincente que explique qual a adequação entre a medida e as ações daqueles que são atingidos por ela, e que até o momento não chegaram a ser denunciados por crime algum – assim como Bruno Monteiro Aiub, o Monark, repetidamente punido por Alexandre de Moraes em decisões nas quais o ministro não é capaz de citar que artigos do Código Penal teriam sido desrespeitados pelo influenciador.

Medidas desproporcionais, que violam direitos básicos de cidadãos, tomadas sem motivo razoável que as justifiquem, não merecem outra qualificação que não seja a de arbítrio puro e simples. Busca-se simplesmente sufocar a voz ou os meios de subsistência daqueles brasileiros considerados “incômodos”, impondo aos alvos das medidas judiciais essa versão moderna da “morte civil”, em que a pessoa segue existindo, mas completamente privada do direito de se expressar sobre qualquer assunto. E tal perseguição político-ideológica sempre se esconde sob o pretexto de “preservação da democracia”, esta mesma que é rotineiramente agredida pela banalização desse tipo de medida, ainda por cima oriunda de uma “criatividade jurídica” de Moraes, pois bloqueio de contas e suspensão de perfis não constam do artigo 319 do Código de Processo Penal. Ninguém é obrigado a concordar com Ludmila Grilo quando ela afirma que o Brasil já passou a Venezuela e se aproxima da China em termos de autoritarismo; mas qualquer um com bom senso haverá de constatar que essa rotina de “castigos sem crime” está muito longe do que se espera ver em uma democracia.

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