O Senado aprovou, em dois turnos de votação, na quarta-feira, uma das PECs que tramitam no Congresso e que tentam remediar o problema, que já se tornou crônico, do ativismo judicial. O texto escolhido foi a PEC 8/2021, de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), que limita o escopo das decisões monocráticas de ministros do STF – uma providência para que a corte não se transforme em um conjunto de “11 Supremos”, em vez de privilegiar a colegialidade que deve marcar as decisões da mais alta instância do Judiciário brasileiro. De forma até surpreendente, a maioria de 52 senadores – apenas três a mais que o mínimo necessário para se aprovar uma emenda à Constituição – contou com parlamentares que costumam votar com o governo Lula e, mais surpreendentemente ainda, com o líder do governo na casa, Jaques Wagner, o único petista a apoiar a PEC.
Para a aprovação, foi preciso fazer algumas concessões em relação ao teor original do projeto. Atos normativos de chefes do Poder Executivo (presidente, governadores e prefeitos) que interfiram em competências dos respectivos Legislativos poderão ser anulados por liminares de ministros do STF, algo que a primeira versão da PEC proibia. Além disso, foi removido o prazo para pedidos de vista, pois os senadores consideraram que o tema já estava normatizado por regras internas do Supremo. Mesmo assim, a reação dos ministros não tardou, especialmente por parte do presidente da corte, Luís Roberto Barroso, e pelo decano Gilmar Mendes. Ambos aproveitaram a sessão de quinta-feira para “mandar recados” ao Congresso, oscilando entre o exagero retórico e a ameaça.
Barroso e seus colegas podem achar e defender que não há razão para mudanças, mas esta é uma avaliação que, no fim das contas, cabe ao poder constituinte derivado, exercido pelo Congresso
Barroso disse que o Supremo estava sendo imolado “no altar das conveniências políticas”, enquanto Mendes chamou a PEC de “cadáver outrora enterrado” e criticou “investidas desmedidas e inconstitucionais” do Legislativo. O decano ainda disse que “esta casa não é composta por covardes, esta casa não é composta por medrosos” , e que “este Supremo Tribunal Federal não admite intimidações”; chamou a maioria favorável à PEC de “pseudorrepresentação”, e afirmou que “os autores dessa empreitada” eram “inequívocos pigmeus morais”. E, como não poderia deixar de ser, aproveitou a oportunidade para atacar mais uma vez a Lava Jato, com uma referência à “República de Curitiba”.
Aqui, estamos no campo do jus sperneandi, que também é garantido aos ministros do STF, embora a forma como foi exercido neste caso não caia nada bem para um integrante da cúpula do Judiciário. Mas há outras considerações que merecem mais atenção. Barroso afirmou, por exemplo, que “o Supremo Tribunal Federal não vê razão para mudanças constitucionais que visem a alterar as regras de seu funcionamento”, que o Congresso tem temas mais importantes sobre os quais deliberar, e que “não há por que alterar o que vem funcionando bem”. Podemos e devemos questionar se o STF realmente vem “funcionando bem”, já que o ativismo judicial desmedido e o arbítrio presente nos inquéritos abusivos abertos desde 2019 e na condução dos processos do 8 de janeiro têm sido extremamente danosos à democracia e à sociedade brasileiras. Mas, ainda que o Supremo realmente estivesse trabalhando perfeitamente dentro dos seus limites institucionais, isso o tornaria blindado a qualquer tentativa dos representantes do povo de alterar algumas das regras que regem o funcionamento da corte suprema?
A resposta é não. Barroso e seus colegas podem achar e defender que não há razão para mudanças, mas esta é uma avaliação que, no fim das contas, cabe ao poder constituinte derivado, exercido pelo Congresso, assim como foi o poder constituinte originário quem decidiu, por exemplo, os critérios para a composição da corte e os tipos de ações que ela poderia julgar. Não havendo violação de cláusulas pétreas, uma alteração constitucional que afete o Supremo é perfeitamente legítima, concorde-se ou discorde-se dela. O que realmente importa, no fim das contas, é o voto dos representantes do povo; a opinião dos ministros é certamente relevante e eles têm o direito de externá-la, mas muito diferente é a pressão indevida sobre parlamentares, atestada por informações de bastidores.
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Neste sentido, é muito preocupante que ministros da corte tenham chegado ao ponto de lembrar Jaques Wagner de que Lula só está no Planalto hoje graças a decisões do Supremo. A bem da verdade, não dizem nada que o Brasil inteiro já não soubesse; a novidade é o sincericídio em grau supremo, ainda mais explícito que aquele manifestado em frases como “nós derrotamos o bolsonarismo” e referências a um “papel político” do Judiciário, ambas da lavra de Barroso. Ainda mais inacreditável é que a lembrança seja feita em um tom de “cobrança de favores”, como se o STF estivesse agora exigindo a contrapartida pela ajuda fornecida desde a decisão de 2021 que fez de Lula um ficha-limpa, deixando de lado qualquer resquício daquela imparcialidade e moralidade que o país esperaria de sua suprema corte.
Recentemente, lembramos neste espaço que o verdadeiro antidemocrata é aquele que não se conforma com as decisões legítimas dos representantes do povo e, tendo nas mãos uma caneta suprema, se dispõe a revogá-las porque pensa de outra forma. As reações de Barroso e Mendes à aprovação da PEC 8/2021 no Senado, com direito a discursos exaltados e pressão sobre parlamentares, dão a entender que os ministros estariam dispostos a isso, caso o texto passe também pela Câmara. Isso, no entanto, apenas agravaria a relação já bastante disfuncional que existe hoje entre os poderes da República.