O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, restabeleceu em caráter liminar – ou seja, provisório – o mandato do vereador Renato Freitas (PT), de Curitiba, que havia sido cassado pela Câmara Municipal por quebra de decoro. Em fevereiro deste ano, Freitas foi protagonista da invasão de uma igreja católica da região central da capital paranaense, durante protesto de rua contra a morte do congolês Moïse Mugenyi e de Durval Teófilo Filho, ambos brutalmente assassinados em episódios supostamente motivados por racismo. Para devolver o mandato a Freitas, Barroso se apoiou em uma questão processual, mas também fez juízos de valor a respeito da conduta da Câmara, com alegações que, uma vez transformadas em precedente, podem dar ensejo a novas violações à liberdade religiosa e de culto, validando novos atos como os que ocorreram na Igreja do Rosário.
A questão processual diz respeito a um conflito entre prazos de duração de processos de cassação de mandato: o processo de Freitas durou 131 dias, dentro do previsto pelo Código de Ética e Decoro Parlamentar do Regimento Interno da Câmara Municipal de Curitiba, mas acima do que determina o Decreto-Lei 201/1967 – que no entanto prevê prazos diferentes, se assim o determinarem legislações locais. Este é um caso típico em que o Judiciário é chamado a resolver a controvérsia, e Barroso o fez recorrendo à Súmula Vinculante 46 do STF, segundo a qual “a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são da competência legislativa privativa da União”, com o entendimento, lastreado em jurisprudência, de que processos por infrações político-administrativas (o caso específico de Freitas) também estão cobertos pela mesma regra. Não é nosso objetivo, aqui, dirimir este conflito, mas chamar a atenção para o que Barroso escreve na sequência de sua liminar.
Por mais nobre que a luta antirracista seja, nem ela, nem nenhuma outra reivindicação justifica o atropelo a outros direitos como a liberdade de culto, nem a hostilização de grupos religiosos, mesmo aqueles que têm posição política mais definida
O ministro, que em muitas ocasiões já se gabou do seu papel “iluminista”, resolveu “iluminar” os vereadores de Curitiba sobre o que é ou não quebra de decoro, mas acaba errando grotescamente em várias ocasiões. Na primeira delas, tenta retratar a cassação como consequência da militância e do protesto antirracista de Freitas, ao afirmar que a decisão da Câmara Municipal constituiu “restrição a direito fundamental, afastando a especial proteção conferida à liberdade de expressão de grupos minoritários em manifestações críticas que têm como objeto a tutela de um valor constitucional, qual seja: a igualdade racial”, e desconsiderou “a imunidade material conferida aos vereadores pelo art. 29, VIII, da Constituição, que constitui uma proteção reforçada às falas relacionadas ao exercício do mandato, dentre as quais se inclui, por óbvio, a luta antirracista”. A perda do mandato, no entanto, não ocorreu pelo protesto antirracista, que jamais deveria render qualquer punição a Freitas se não tivesse ocorrido o episódio específico da invasão da igreja – uma atitude sobre a qual não incide a imunidade parlamentar mencionada por Barroso, que protege “opiniões, palavras e votos”.
Barroso se afasta ainda mais da realidade quando se refere ao ocorrido simplesmente como “protesto pacífico em favor das vidas negras feito pelo vereador reclamante dentro de igreja”. Barroso, que em sua sabatina no Senado afirmou que “a religião é um espaço da vida privada. Merece todo o respeito, mas é um espaço da vida privada”, parece desconhecer completamente as implicações do ato de Freitas sobre a liberdade de culto. Por mais que a invasão tenha ocorrido depois do fim da missa (e não enquanto ela ocorria, como afirmaram os relatos iniciais), o fato de que, quando ainda estava acontecendo do lado de fora da igreja, o protesto já vinha atrapalhando a cerimônia, levando o sacerdote celebrante a “acelerar” o rito. Além disso, igrejas não se tornam “terra de ninguém” quando não há missas ou cultos: os fiéis continuam usando o templo para suas orações privadas, momento que foi interrompido e tumultuado por Freitas e pelos demais manifestantes.
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E Barroso não poderia nem mesmo alegar que se tratou de um protesto “pacífico”. Ainda que não tenha havido confronto físico, o episódio foi marcado por toda sorte de xingamentos e ataques a católicos. Testemunhas da invasão afirmaram que o padre Luiz Haas foi chamado de “racista” pelo grupo que forçou a entrada por uma porta lateral da igreja; e o próprio Freitas, uma vez dentro do templo, discursou criticando os católicos por seu apoio ao “policial que está no poder”, em referência a Jair Bolsonaro – isso apesar de não haver possibilidade alguma de se responsabilizar os católicos (muito menos os que estavam na Igreja do Rosário no momento da invasão) pela vitória de Bolsonaro em 2018 ou atribuir um posicionamento político à Igreja Católica, que respeita a liberdade dos fiéis na hora do voto, limitando-se a orientações a respeito de temas que lhe são caros.
Ao silenciar completamente sobre todos esses pormenores fundamentais do episódio, preferindo em vez disso dar aos vereadores uma aula sobre “racismo estrutural”, afirmando quase que explicitamente que esse teria sido o real motivo da cassação de Freitas, Barroso deixa as portas abertas para que episódios como o de Curitiba se repitam. Por mais nobre que a luta antirracista seja, nem ela, nem nenhuma outra reivindicação justifica o atropelo a outros direitos como a liberdade de culto, nem a hostilização de grupos religiosos, mesmo aqueles que têm posição política mais definida – o que não é o caso da Igreja Católica. Barroso poderia ter restituído o mandato a Freitas apenas usando argumentos formais relativos a prazos processuais supostamente desrespeitados, mas, com seus juízos de valor, mostrou também seu desprezo pelo fenômeno religioso e revelou uma concepção de laicidade frontalmente contrária àquela que guiou o Constituinte de 1988.
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