“O que é ruim a gente esconde” é uma frase que entrou para o folclore político nacional, dita há quase 30 anos pelo então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero. Mas o presidente Lula resolveu ignorá-la ao assinar, na quarta-feira, dia 5, dois decretos que têm o potencial de prolongar o drama de milhões de brasileiros sem acesso a água potável e esgoto tratado. O petista não escondeu nada, pelo contrário: realizou cerimônia no Palácio do Planalto com a presença de ministros, governadores e representantes de empresas de saneamento, públicas e privadas, como se estivesse fazendo um grande bem ao país.
Por mais que o Novo Marco do Saneamento Básico, aprovado em 2020 pelo Congresso Nacional, tenha previsto a necessidade de regulamentação de alguns de seus itens, os decretos de Lula vão muito além disso: eles desfiguram a legislação, caminhando na direção diametralmente oposta àquela desejada pelos legisladores. Em outras palavras, sem força política para mudar a lei no Congresso, Lula usou o argumento da regulamentação para alterar ele mesmo partes essenciais do novo marco, especialmente no que diz respeito à contratação de empresas. Por mais que a opinião dos petistas sobre o tema represente um caminho (ainda que equivocado) entre os vários possíveis, fato é que o assunto foi longamente discutido pelos legisladores durante a tramitação do texto no Congresso e, por meio de um processo legítimo, eles rejeitaram as visões que Lula agora impõe com suas canetadas. Esse desvirtuamento do poder presidencial de regulamentar, além de afrontar o Legislativo, também era receita certa para a judicialização do tema, e o Partido Novo já contestou os decretos no Supremo Tribunal Federal.
Os 35 milhões de brasileiros sem água tratada e os 100 milhões sem esgoto coletado valem menos para o petismo que sindicalistas e estatais medíocres e quebradas que precisam seguir existindo para servirem de cabide de emprego a “companheiros”
E, se erra na forma, Lula erra ainda mais no conteúdo. Seus decretos permitirão, por exemplo, a manutenção de contratos precários, em que as empresas prestadoras de serviço não foram capazes de comprovar capacidade econômico-financeira para realizar os investimentos necessários para a melhoria e expansão das redes de água e esgoto. Cerca de 20% dos municípios brasileiros, reunindo uma população de quase 30 milhões de pessoas, tiveram seus contratos considerados irregulares. Agora, pouco menos de um terço desses municípios terão a chance de refazer o processo com as regras mais frouxas, e mesmo os demais ainda ganharão uma oportunidade, sob o pretexto de não terem os serviços interrompidos. O Planalto alega que “as agências reguladoras vão acompanhar o cumprimento das metas com transparência”, o que é de uma enorme hipocrisia, vindo do mesmo governo que, no seu primeiro dia, tirou da Agência Nacional de Águas (ANA) funções de regulamentação do setor.
Igualmente preocupante é a permissão para que companhias estatais continuem prestando serviços em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões (os chamados “contratos de programa”) sem passar pelo processo de licitação, o que, mais uma vez, extrapola totalmente o poder presidencial de regulamentar, pois tal permissão viola frontalmente os artigos 2.º, XV, e 49, XV, que mencionam explicitamente a necessidade de concorrência na prestação dos serviços de saneamento básico. O decreto de Lula é tudo o que estatais ineficientes queriam, pois se livram do incômodo de terem de enfrentar empresas do setor privado em um processo limpo, no qual vence quem demonstrar mais capacidade de levar um serviço de qualidade ao maior número possível de cidadãos.
A escolha de Lula, com a importante participação de outros arautos do atraso como o deputado Guilherme Boulos (PSol-SP) e o ministro da Casa Civil, Rui Costa – que até há pouco governava a Bahia, cuja estatal de saneamento é uma das beneficiadas com os decretos –, é evidente: os 35 milhões de brasileiros sem água tratada e os 100 milhões sem esgoto coletado valem menos que sindicalistas e estatais medíocres e quebradas que precisam seguir existindo para servirem de cabide de emprego a “companheiros”. Para isso, vale até criar insegurança jurídica e afastar um setor privado que se mostrou interessado em investir assim que o Novo Marco do Saneamento se tornou lei.
“Se der certo, todos vão ganhar, porque a população brasileira vai ganhar”, prometeu, durante a assinatura dos decretos, um Lula que, como se sabe, não pensará duas vezes antes de reivindicar a paternidade do sucesso. Mas e se der errado? “Se isso aqui não der certo, é um fracasso de todo mundo. Se isso aqui não der certo, não tem culpado”, disse o mesmo Lula, que, como se sabe, não pensará duas vezes antes de terceirizar a culpa pelo desastre que ele mesmo causou. No entanto, se daqui a dez anos a universalização prevista no Novo Marco do Saneamento não tiver ocorrido porque estatais seguiram prestando serviços precários, não faltarão brasileiros com memória para apontar que, sim, houve culpados, a começar por um presidente que fingiu preocupação com os pobres, mas agiu para mantê-los sem água tratada e convivendo com o esgoto a céu aberto.