No país em que delatores se gravam sem saber e acabam entregando às autoridades o áudio que complica a própria situação, e em que a Polícia Federal leva horas para conseguir contar a montanha de dinheiro encontrada no apartamento usado por alguém que ocupou cargos importantes nos últimos três governos, as duas denúncias oferecidas em menos de 24 horas contra os ex-presidentes da República Lula e Dilma Rousseff pela Procuradoria-Geral da República acabam sendo apenas mais uma notícia em meio ao redemoinho que agita o poder.
E, sendo apenas mais uma notícia, há o risco de se cair justamente naquilo que Joesley Batista e Ricardo Saud conversavam, no áudio que complicou sua delação premiada: a criminalização ampla, geral e irrestrita da classe política, com a perigosa consequência de uma banalização da roubalheira que nivele tudo por baixo e deixe de identificar agravantes em determinados escândalos de corrupção. E agravantes são o que não faltam no esquema denunciado pela Procuradoria-Geral da República.
O Estado foi colocado a serviço não de meros projetos de enriquecimento pessoal, mas do fortalecimento de um projeto de poder
Na terça-feira, Janot denunciou o chamado “quadrilhão do PT”, que ainda inclui os ex-ministros petistas Gleisi Hoffmann (atual presidente da legenda), Paulo Bernardo, Guido Mantega, Antonio Palocci e Edinho Silva, além do ex-tesoureiro João Vaccari Neto. O grupo teria recebido propinas que somam quase R$ 1,5 bilhão, oriundas de contratos de empreiteiras com a Petrobras, além de outros atos criminosos dentro do BNDES e do Ministério do Planejamento. No dia seguinte, Lula, Dilma e o também ex-ministro Aloizio Mercadante foram denunciados por obstrução de justiça – no caso dos ex-presidentes, a denúncia trata do episódio da nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil, em março de 2016, para lhe dar foro privilegiado.
O que difere a corrupção do PT de outros escândalos, ou mesmo da ação de outros protagonistas do mesmo esquema dedicado a pilhar a Petrobras e outras estatais? Trata-se do uso da estrutura do Estado a serviço não de meros projetos de enriquecimento pessoal, mas do fortalecimento de um projeto de poder. A democracia foi duplamente fraudada com o esquema idealizado, segundo Rodrigo Janot, por Lula. Primeiro, por meio dos desvios com a finalidade de abastecer o partido, e que deram ao PT uma vantagem competitiva formidável; segundo, por meio da cooptação de outros partidos, que também puderam se locupletar com o dinheiro das propinas em troca do apoio político “para que seus interesses e do seu grupo político fossem acolhidos no âmbito do Congresso Nacional”, de acordo com o texto da denúncia. A prática, iniciada no mensalão, continuou no petrolão; os dois escândalos são indissociáveis, como já disseram Janot, membros da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e até ministros do Supremo Tribunal Federal.
A submissão das estruturas de Estado à vontade e ao projeto de um partido é elemento clássico dos autoritarismos, e isso torna tão nefastos os esquemas de corrupção organizados pelo PT. Essa mentalidade toma conta do partido e de boa parte de sua militância, e explica por que os operadores desses desvios, em vez de execrados, são louvados como “guerreiros do povo brasileiro” e ganham atos de desagravo: o crime cometido em benefício do partido é não apenas desculpável, mas meritório.
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Isso não nos impede de temer pela denúncia oferecida por Janot, não pelos seus alvos, mas por seu autor. O procurador-geral, prestes a deixar o cargo, tem seu trabalho questionado em outra frente, a da delação premiada dos executivos da JBS. Se à época do fechamento do acordo já havia dúvidas sobre a generosidade da PGR ao conceder a Joesley Batista uma imunidade quase total, a divulgação de novos áudios mostra que os delatores ludibriaram Janot, o que causou um grave dano à sua imagem. A tentação de oferecer à opinião pública uma peça que conserte o estrago causado pelo episódio de Joesley é grande, e o risco é que Janot tenha feito um trabalho apressado e superficial – as mesmas críticas, aliás, que foram feitas à denúncia contra Michel Temer.
Por tudo que a Operação Lava Jato já apurou, é mais que evidente a montagem de um esquema criminoso para pilhar o Estado brasileiro, e que não teria como funcionar sem a participação ou a chefia daqueles que ocupavam os mais altos cargos da nação. Mas, para que os responsáveis paguem por isso, é preciso que o Judiciário receba denúncias sólidas, bem embasadas. Material para isso Janot teve de sobra. Se soube usá-lo bem, isso saberemos em breve.
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