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Editorial

Lula e o abandono do dólar

Presidente Lula se encontrou com o ditador da China, Xi Jinping, e sugeriu que relações comerciais entre os dois países prescindam do uso do dólar. (Foto: Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto)

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Em sua passagem pela China neste mês, o presidente Lula fez uma provocação e defendeu uma medida de comércio exterior. A provocação foi feita em forma de duas perguntas: “Por que não podemos fazer nosso comércio lastreado em nossa moeda? Quem é que decidiu que era o dólar?” A medida proposta por Lula foi que Brasil e China pudessem realizar seu comércio bilateral na moeda dos dois países, sem envolvimento da moeda-padrão internacional, o dólar.

Se Lula fosse dado a ler e estudar, ou se tivesse o hábito de pedir lições a seus assesores especializados – atitudes essas que se esperam de toda pessoa que chega à Presidência da República –, ele saberia que o sistema monetário internacional foi reformado em 1944, na conferência de Bretton Woods, nos Estados Unidos, com a aprovação de três medidas de alto impacto. A primeira foi a substituição do padrão-ouro pelo padrão-dólar no comércio internacional, colocando a moeda norte-americana no centro do comércio exterior mundial após o fim da guerra. A segunda medida foi a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), instituição com atuação global, que recebe aportes financeiros das nações filiadas para financiar déficits do balanço de pagamentos dos países-membros em suas relações comerciais com o resto do mundo. A terceira medida foi a criação do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), cuja holding é denominada Banco Mundial, para efetuar empréstimos de longo prazo aos países filiados destinados a investimentos em infraestrutura.

A escolha da moeda para servir como moeda-padrão internacional foi definida com base em pelo menos três condições: a) a moeda-padrão deveria ter curso livre e legal no país que a emitisse, que deveria ter um produto nacional grande o suficiente para garantir suprimento de bens e serviços aos detentores dessa moeda que quisessem gastá-la em aquisição de produtos; b) tal país deveria ter histórico de estabilidade econômica e inflação baixa e c) deveria ser reconhecido como um lugar de instituições livres e estáveis. A escolha feita naquela conferência de 1944 recaiu sobre o dólar norte-americano para o papel de moeda-padrão internacional, por serem os Estados Unidos o país que mais se aproximava de atender àquelas três condições referidas, com a exigência adicional de que o total de dólares emitidos pelos Estados Unidos estivesse lastreado em ouro estocado no United States Bullion Depository (Depósito de Ouro dos Estados Unidos), na pequena cidade de Fort Knox. Lula não precisaria ler mais que poucas páginas para conhecer essas informações, suas causas e consequências para a vida das nações e o destino do comércio mundial.

A China pratica duas ações condenadas: a taxa de câmbio sempre foi tabelada pelo governo, logo não é um preço formado pelo mercado; e, em longos períodos, a China manipulou a taxa de câmbio de forma a prejudicar a concorrência do mercado externo

Respondida a primeira pergunta de Lula sobre quem decidiu que era o dólar a moeda-padrão internacional, resta a segunda pergunta: por que não podemos fazer nosso comércio lastreado em nossa moeda? A rigor, não há proibição legal de que dois países negociem em outra moeda que não o dólar. A questão deve ser resolvida em outra esfera. Resumidamente, é possível levantar alguns pontos essenciais do comércio entre dois países, a começar pelo fato de que os agentes primários do comércio são duas entidades econômicas – um comprador e um vendedor, pessoa física ou pessoa jurídica – que não residem no mesmo país. Uma operação comercial é definida como exportação (feita pelo vendedor) e importação (feita pelo comprador).

Imaginando uma operação comercial simples – por exemplo, exportação de soja feita por uma empresa brasileira para um cliente estabelecido na China –, trata-se de um evento que passa pelo menos por quatro fases: a) a contratação da operação de compra e venda; b) o embarque e o faturamento; c) a liquidação (pagamento pelo importador, recebimento pelo exportador); e d) a compensação (conversão da moeda usada na operação para a moeda do país do exportador). Assim, inicialmente, uma operação comercial tal qual essa descrita pode ser contratada fora do dólar; logo, seria feita na moeda chinesa, o yuan (cujo nome oficial é renmimbi), ou na moeda brasileira, o real. O problema começa quando a contratação da operação exige duas decisões iniciais: em qual moeda – se em yuan ou real – a operação comercial será feita e, uma vez decidida a moeda do negócio, qual será o preço de exportação.

Nesse primeiro momento, o da contratação, seja em yuan ou em real, o preço da operação terá de usar alguma referência, que não pode ser uma invenção do exportador (no Brasil) nem do importador (na China). Em se tratando de commodities, não se escapará de as partes terem de adotar o preço internacional em dólar (no caso da soja, dado pela cotação na Bolsa de Chicago), e no mínimo por uma razão simples: o exportador brasileiro somente fechará o negócio se, ao fim de todo o processo, o preço final que ele vier a receber for igual ou melhor que o preço que poderia obter se exportasse para outro país com base no preço cotado na Bolsa de Chicago, ajustado pelos custos internos de transporte, portos, taxas e impostos brasileiros. Assim, não se passa da primeira fase (a contratação) esquecendo completamente o dólar. Isso acabará ocorrendo para a maior parte em valores do comércio Brasil-China.

Resolvida a primeira fase da operação, a segunda fase se refere ao embarque e faturamento e, na sequência, vem a terceira fase: a liquidação, que é o pagamento feito pelo importador, na moeda prevista no contrato (yuan ou real). Se, no exemplo dado, o importador chinês liquidar o pagamento em yuan (caso o contrato seja feito nessa moeda), o exportador brasileiro terá de ir para a quarta fase, a conversão do yuan em reais, o que deve acontecer numa câmara de compensação gerida pelo Banco Central (BC), pois o exportador tem sua vida financeira em reais (custos de produção e demais operações, inclusive pagamento de impostos) no território brasileiro. E aí surge um novo problema: qual será a taxa de câmbio na operação de conversão de yuan para reais? Esta já seria uma questão suficientemente complexa se o Brasil estivesse tratando com uma economia livre, mas que se torna ainda mais grave quando se tem em mente que a China sempre praticou duas ações condenadas pelo mercado mundial: a taxa de câmbio (ou seja, o preço do dólar na moeda nacional) sempre foi tabelada pelo governo, logo não é um preço formado pelo mercado; e, em longos períodos, a China manipulou a taxa de câmbio de forma a prejudicar a concorrência do mercado externo.

Vale lembrar que, se o Brasil estabelecer um comércio bilateral com a China usando diretamente as moedas dos dois países, o Banco Central terá de criar uma câmara de compensação e conversão dessas moedas, e aí surge o problema de como o BC aplicará o saldo monetário em caso de superávit, e como cobrirá eventual déficit brasileiro na balança comercial entre os dois países (falta da moeda chinesa). Seguramente, há especialistas que imaginam respostas para todos esses problemas, como podem ter outros questionamentos além dos aspectos abordados neste texto.

A questão é que, ainda que não seja impossível estabelecer comércio bilateral usando diretamente as moedas dos dois países envolvidos nas operações de importação e exportação, é preciso lembrar que uma coisa é fazer algumas operações restritas e experimentais – como a China já fez com Rússia e Austrália –, outra coisa é eliminar totalmente o dólar em todas as operações entre os dois países. Em resumo: o assunto é muito mais complexo do que pode parecer à primeira vista tanto para o próprio presidente da República como para aqueles que aplaudem a ideia sem tem a menor noção dos meandros técnicos, monetários e operacionais que o problema comporta.

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