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Uma guerra de versões está em curso, diante de uma forcinha amiga dada pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) a uma Argentina em frangalhos, e que vive um acirrado processo eleitoral. O que há de certo é o fato de o banco ter emprestado US$ 1 bilhão ao governo de Alberto Fernández, embora a Argentina já tivesse atingido o seu limite de crédito dentro da instituição; por isso, a operação extraordinária precisaria ser aprovada pelos países-membros – apenas o Peru se opôs. O dinheiro era necessário para que os argentinos quitassem parte de sua dívida com o Fundo Monetário Internacional e, assim, tivessem liberado um novo desembolso do FMI, de outros US$ 7,5 bilhões.
A controvérsia surgiu com reportagem do jornal O Estado de S.Paulo publicada na noite de 3 de outubro, afirmando que a operação, ocorrida em agosto, se deu após a interferência direta do presidente Lula. O petista teria telefonado para a ministra do Planejamento, Simone Tebet, que também representa o Brasil no CAF, para que ela trabalhasse em favor do chamado “empréstimo-ponte”. Como o país tem mais de um terço de todo o capital do CAF, exerce enorme influência nas decisões do banco. Ato contínuo, Tebet negou qualquer ação da parte de Lula, embora fosse inegável que o acesso a mais recursos cairia como uma luva para os peronistas de esquerda que governam a Argentina e, especialmente, para o ministro da Economia, Sergio Massa, o candidato governista à Casa Rosada, que conta com o apoio dos petistas.
O futuro presidente da Argentina receberá um país que gastou tudo, o que tinha e o que não tinha, para perpetuar o projeto de poder da esquerda, e com isso deixou que a inflação escapasse completamente do controle e que a pobreza se tornasse endêmica
A suposta interferência de Lula é o tipo de episódio que, como dizem os italianos, se non è vero, è ben trovato. Afinal, ainda que neste caso não tenha havido o telefonema presidencial, uma ação como esta casaria perfeitamente com o modus operandi de Lula, que, no governo ou fora dele, jamais se recusou a colaborar com seus camaradas ideológicos latino-americanos que disputavam os cargos máximos de seus países. Os vídeos de apoio a Gustavo Petro na Colômbia, Gabriel Boric no Chile e Xiomara Castro em Honduras são o de menos em comparação com o “empréstimo” do marqueteiro João Santana a Hugo Chávez e Nicolás Maduro – a Operação Lava Jato apurou que o publicitário era pago com recursos da empreiteira Odebrecht, que tinha negócios na Venezuela. Desde que iniciou seu terceiro mandato, Lula já deu várias demonstrações de camaradagem em relação à Argentina, incluindo a indicação do país para compor os Brics.
Os bilhões do FMI são essenciais para que, nesta reta final da campanha – o primeiro turno das eleições está marcado para o dia 22 –, o ministro Massa continue a operar na quinta marcha do populismo. Os últimos meses foram marcados por inúmeros anúncios de bônus em dinheiro para várias categorias como aposentados e desempregados, facilitação do acesso ao crédito, ampliação da faixa de isenção do imposto de renda e aumento nos valores dos programas sociais. Todo esse dinheiro sem lastro que entra na economia argentina tem um único efeito: agravar a inflação galopante, que no acumulado de 12 meses até agosto chegou a 124,4%.
Distribuir dinheiro para que a população ignore temporariamente a inflação causada justamente pelas políticas fiscais irresponsáveis é tudo o que resta a um candidato que disputa acirradamente votos com o libertário Javier Milei (líder na maioria das pesquisas) e a candidata de centro-direita Patricia Bullrich. Até agora, nenhuma das pesquisas que trazem cenários de um segundo turno com a presença do esquerdista lhe são favoráveis: Massa perderia tanto para Milei quanto para Bullrich. O libertário reagiu à notícia de que Lula teria agido nos bastidores para facilitar o empréstimo do FMI, e também foi à Justiça para impedir que o governo amplie gastos que comprometam as contas públicas.
Independentemente de quem saia vencedor do pleito, o futuro presidente receberá de Fernández um país que gastou tudo, o que tinha e o que não tinha, para perpetuar o projeto de poder do peronismo de esquerda, e com isso deixou que a inflação escapasse completamente do controle e que a pobreza se tornasse endêmica. Isto é um alerta para o Brasil: por mais que o Estado brasileiro não seja tão inchado quanto o argentino, e que tenhamos mais ferramentas de controle do gasto público – embora elas já tenham sido melhores –, olhar para a Argentina é ver como a mentalidade do “gasto é vida” elevada à enésima potência arruinou uma nação que já esteve entre as mais ricas do mundo.