“A greve de fome não pode ser utilizada como um pretexto de direitos humanos para liberar as pessoas. Imagine se todos os bandidos presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade.” Esta era a avaliação que Lula fazia do recurso à greve de fome – uma “insanidade”, segundo o petista – em 2010, último ano de seu segundo mandato. Doze anos antes dessa declaração, em 1998, o mesmo Lula dissera ao então presidente Fernando Henrique Cardoso: “Fernando, você tem a chance de passar para a história como um democrata ou como o presidente que permitiu que dez jovens que cometeram um erro morressem na cadeia, e isso não vai apagar nunca” – os “jovens”, no caso, estavam justamente em greve de fome para que fossem soltos. E neste 2022, ou seja, outros 12 anos depois de atacar greves de fome, o pré-candidato Lula agora se gaba de ter conseguido articular a libertação daqueles presos que fizeram exatamente o que o petista criticara em 2010. O que aconteceu? Lula retornou ao modo “metamorfose ambulante”, como se definira em 2007?
A explicação é bem mais simples, e repete o método habitual na loucura petista: a avaliação que Lula e o PT fazem de qualquer ato depende não da ação propriamente dita, mas apenas de quem a pratica e com que finalidade. Assim como os maiores esquemas de corrupção da história recente do país, por terem sido cometidos com o objetivo de perpetuar o projeto de poder petista, rendem aos seus protagonistas e operadores lugar no panteão dos “guerreiros do povo brasileiro”, quaisquer crimes cometidos em benefício da esquerda recebem o mesmo tratamento. Pois aqueles por quem Lula intercedeu junto a FHC eram ninguém menos que os sequestradores do empresário Abílio Diniz, em 1989: cinco chilenos, dois canadenses, dois argentinos e um brasileiro, membros do Movimento de Esquerda Revolucionária-Político (MIR-Político) e das Forças Populares de Libertação (FPL) de El Salvador. Como eles queriam usar o dinheiro para financiar a guerrilha no país centro-americano, o fato de terem sequestrado uma pessoa e a mantido por uma semana em cárcere privado, sob ameaça constante de morte, importa pouco: eram apenas “meninos” que “cometeram um erro”. Praticamente “guerreiros do povo salvadorenho”.
Ao narrar com orgulho o que fez em benefício de criminosos, Lula consegue o que parecia impossível: descer mais um degrau na escala de degradação moral da vida pública
E aqueles que optaram pela “insanidade”, quem eram? Dissidentes da mais carniceira das ditaduras latino-americanas, a cubana. Orlando Zapata Tamayo, Guillermo Fariñas e outros presos não sequestraram nem ameaçaram a vida de ninguém; apenas se colocaram contra Fidel Castro e pediram liberdade em seu país. Zapata morreu em fevereiro de 2010, após 85 dias de greve de fome, na véspera da chegada de Lula a Havana para uma visita presidencial e um mês antes da entrevista em que o petista criticou o protesto dos prisioneiros cubanos. Aparentemente, Lula não se preocupou em advertir seu ídolo Fidel para a possibilidade de a morte de um dissidente ficar gravada como uma mancha na biografia do ditador, como fizera 12 anos antes ao avisar FHC.
Lula não se incomodou nem mesmo com a chance de carregar uma morte por greve de fome no próprio currículo, pois, quando era presidente da República, não cedeu ao protesto de dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra (BA), que em 2007 se colocou contra a transposição do Rio São Francisco. A greve de fome durou 24 dias e terminou quando dom Cappio desmaiou, passou meia hora desacordado e foi internado em uma UTI. “Se o Estado cede, o Estado acaba. E o Estado precisa funcionar”, justificou Lula à época – o máximo que o petista fez foi procurar o Vaticano para que interferisse e pedisse ao bispo o fim da greve de fome.
A greve de fome é um recurso extremo; concorde-se ou não com ela, é ponto pacífico que um preso político injustamente encarcerado e um líder religioso contrário a uma obra por ele considerada prejudicial ao povo (esteja tal avaliação correta ou equivocada) têm motivos muito mais dignos para fazer uma greve de fome que um bando de sequestradores interessados em sair mais cedo da cadeia onde pagavam por seus crimes. Qualquer um deveria ser capaz de reconhecer isso – menos Lula, que intercedeu pela vida dos bandidos de esquerda, mas não dispensou o mesmo tratamento a quem ousou enfrentar governos de esquerda: os dissidentes cubanos e um bispo que já havia sido até apoiador do petista, a ponto de dom Cappio ter dito ao então presidente, em 2005, que “minha vida de militante foi vestindo sua camisa”. Ao narrar com orgulho o que fez em benefício de criminosos, Lula consegue o que parecia impossível: descer mais um degrau na escala de degradação moral da vida pública.