Na terça-feira, o presidente Lula esteve em Buri (SP), para anunciar investimentos na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e comemorar os dez anos de um dos campi da instituição. O câmpus Lagoa do Sino foi construído em um terreno doado pelo escritor Raduan Nassar, e o presidente aproveitou esse fato para atacar o imposto sobre herança no Brasil, que ele considera baixo. “Nos Estados Unidos, quando uma pessoa tem herança e ela morre, 40% da herança é paga de imposto. (...) Então, nos Estados Unidos, como o imposto é caro, você tem muitos empresários que fazem doação de patrimônio para universidade, para instituto, para laboratório, para fundações. Aqui, no Brasil, você não tem ninguém que faça doação porque o imposto sobre herança é nada, é só 4%”, disse o petista.
E não foi só isso: logo na sequência, Lula emendou que, devido à alíquota baixa, “a pessoa não tem interesse em devolver o patrimônio dela” – atenção, aqui, ao verbo devolver, como se o indivíduo tivesse recebido sua riqueza de alguém ou de algo, e tivesse alguma obrigação moral ou legal de retornar os valores. Em uma interpretação muito benigna, pode-se até entender que Lula estivesse se referindo ao hábito norte-americano de fazer doações à universidade onde a pessoa estudou, sua alma mater. Mas não se pode descartar que Lula estivesse pretendendo, no fim das contas, que os falecidos “devolvam” sua riqueza ao próprio Estado, aquele que cobra os tais 40%.
Lula compara o imposto de herança brasileiro ao norte-americano, mas conta a história apenas pela metade
Na afirmação de Lula há duas verdades. Uma, que o estate tax norte-americano tem uma alíquota de 40%; duas, que a alíquota alta incentiva indivíduos muito ricos a fazer doações vultosas ainda em vida, para que o dinheiro não acabe indo para as mãos do governo. Mas o que há de correto na fala do petista termina aí, e ele ignora uma série de outros fatores muito ou até mais relevantes em sua defesa da elevação do imposto de herança brasileiro, que é estadual (o ITCMD) e cuja alíquota máxima é de 8% – o dobro daquela descrita por Lula.
O petista não afirmou, por exemplo, que 40% é a alíquota máxima do estate tax norte-americano, aplicável apenas ao que passa de US$ 1 milhão. E, ainda assim, existem tantas regras adicionais, isenções e exceções, que na prática só pagam imposto heranças superiores a US$ 13 milhões, e a cobrança só incide sobre o que ultrapassa esse valor. Ele também deve desconhecer os fatores culturais envolvidos na taxação de heranças, com diferenças significativas entre a mentalidade anglo-saxã do self-made man e da mentalidade latina da “propriedade coletiva” familiar. Além disso, se Lula quer usar os Estados Unidos como exemplo, poderia ter lembrado que a carga tributária norte-americana é de 26,8% do PIB, segundo dados de 2021 coletados no portal Our World in Data, contra os 33% brasileiros; ou que os impostos sobre produção e consumo por lá, mesmo variando de estado para estado, não superam os 10%, enquanto aqui caminhamos para ter um dos maiores IVAs do mundo.
Independentemente da discussão acadêmica e dos argumentos favoráveis ou contrários à taxação sobre heranças, até as paredes da sede da Receita Federal sabem que nem Lula, nem o ministro Fernando Haddad, nem o secretário Bernard Appy, nem os responsáveis por projetos de lei no Senado que elevam a alíquota máxima do ITCMS para 20% têm em mente qualquer tipo de compensação, redução de outros tributos ou da carga tributária em geral caso o imposto de herança fosse elevado. Trata-se, pura e simplesmente, de arrecadar mais.
E ainda há quem se surpreenda ao ver a enxurrada de memes que tomou conta da internet nos últimos dias, incomodando o governo e seus aliados na imprensa, que chegaram até a clamar por censura (disfarçada, claro, de “regulação”). Não é este governo que vem elevando impostos e instituindo novas cobranças, e que não esconde a intenção de equilibrar o orçamento apenas acrescentando receitas e não cortando despesas? Que parte desse esforço encontre a ajuda do Legislativo não anula o fato de que a iniciativa vem sempre do Executivo. A fala de Lula – que é chefe do alvo preferencial dos memes – em defesa de um imposto sobre herança anabolizado nada mais faz que confirmar o que a “sabedoria da internet” vem espalhando.