Na infame entrevista em que comparou o ditador nicaraguense Daniel Ortega à chanceler alemã Angela Merkel, em 2021, o então aspirante ao Planalto Lula se permitiu uma leve crítica, cheia de condicionais, ao amigo esquerdista: “Se o Daniel Ortega prendeu a oposição para não disputar a eleição, como fizeram no Brasil contra mim, ele está totalmente errado”. Para começar, Lula não foi preso “para não disputar a eleição”; sua estadia nas instalações da Polícia Federal em Curitiba se deveu a uma condenação (posteriormente anulada pelo STF em um dos maiores erros judiciais da história do país) em duas instâncias por corrupção e lavagem de dinheiro, baseada em farto conjunto probatório. E não havia “se” no caso nicaraguense: Ortega de fato mandou encarcerar boa parte dos que se atreveram a desafiá-lo nas urnas naquele 2021. Nicolás Maduro acaba de fazer o mesmo – mudando apenas o timing para depois do pleito, e não antes dele –, mas agora Lula está bem mais quietinho.
No dia 2 de setembro, o Ministério Público venezuelano, totalmente alinhado com o chavismo, pediu a prisão de Edmundo González, o candidato oposicionista que, a julgar pelos boletins de urna publicados pela oposição na internet, venceu a eleição de julho com ampla vantagem sobre Maduro, que no entanto foi declarado vencedor pelo Conselho Nacional Eleitoral, sem que o órgão eleitoral apresentasse uma única ata de seção. A lista de crimes que o MP imputava a González era ampla: usurpação de funções, falsificação de documentos públicos, instigação à desobediência às leis, conspiração, sabotagem a danos de sistemas e associação criminosa. No mesmo dia 2, a Justiça venezuelana, igualmente subserviente a Maduro, ordenou a prisão. González não se entregou e seu paradeiro é desconhecido.
O momento é de denunciar a permanência ilegítima de Maduro no poder e a repressão violenta que ele promove, mas nem Lula nem Celso Amorim querem nada disso
A ordem de prisão foi prontamente repudiada por oito nações latino-americanas – Argentina, Costa Rica, Guatemala, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai emitiram nota conjunta, e o Chile publicou manifestação isolada. Além disso, o episódio provavelmente foi a gota d’água para que dois pedidos de prisão de Maduro fossem ou estejam em vias de ser enviados ao Tribunal Penal Internacional (TPI) pelo “conjunto da obra” da violenta repressão desencadeada desde a farsa eleitoral, um deles assinado pelo governo argentino e outro, por 31 ex-presidentes latino-americanos e três ex-primeiros-ministros da Espanha (incluindo um socialista, Felipe González).
Já o Brasil de Lula, sempre acompanhado da Colômbia de Gustavo Petro, emitiu mais uma de suas notas tíbias no dia 3. Manifestando “profunda preocupação” (como se o caso não exigisse repúdio enfático), Lula e Petro afirmam que a ordem de prisão “dificulta a busca por solução pacífica, com base no diálogo entre as principais forças políticas venezuelanas” (como se Maduro quisesse algum diálogo ou solução pacífica). O tom do texto, bastante ameno se comparado com a brutalidade da repressão bolivariana, mereceu críticas da entidade de direitos humanos Human Rights Watch.
A postura brasileira de omissão-cumplicidade tem abalado tanto a imagem do país que o chanceler de facto, Celso Amorim, até teve um breve momento de dignidade em entrevista à agência Reuters, também no dia 3. Disse que a ordem de prisão contra González foi a “coisa errada a fazer” e que, se o candidato fosse encarcerado, “seria uma prisão política, e não aceitamos presos políticos” – ignorando o fato de que na Venezuela existem presos políticos há muitos anos, sem que isso merecesse críticas de Lula. No mesmo dia, o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, chegou até a dizer que o Brasil poderia conceder asilo político a González, uma oferta que o venezuelano precisaria analisar com extremo cuidado, já que o histórico petista nesse aspecto é lamentável – que o digam os boxeadores cubanos que escaparam das garras da vigilância comunista durante os Jogos Pan-Americanos do Rio, em 2007, mas foram caçados até serem encontrados e devolvidos a Fidel Castro.
Mas as falas de Amorim e Costa, pelo jeito, foram apenas um breve surto de sensatez, logo desfeito pelo chefe de ambos. Na sexta-feira, em entrevista a uma rádio de Goiânia, Lula voltou a fazer o jogo de Maduro ao criticar as sanções impostas pelas grandes democracias ocidentais como meio de pressionar o ditador, e prometeu que não romperá relações com a Venezuela mesmo que as atas de votação jamais apareçam. Por fim, limitou-se a dizer que “o comportamento do Maduro deixa a desejar”, como se estivéssemos apenas diante de alguém que governa mal, toma decisões equivocadas ou diz algumas bobagens, e não diante de um ditador que devasta seu país e persegue ferozmente qualquer um que lhe faça oposição.
Como bem disse Isabel Díaz Ayuso, presidente da Comunidade (o equivalente a um governador de estado) de Madri, ao defender que a Espanha concedesse asilo a Edmundo González, “já acabou o momento” de insistir na divulgação de boletins de urna – posição que, além de Brasil e Colômbia, também é a do PSOE, a legenda que governa a Espanha atualmente. De fato, nada indica que tais atas aparecerão, pois já foram consideradas dispensáveis pelo Tribunal Supremo de Justiça venezuelano ao confirmar a “vitória” de Maduro; e, ainda que aparecessem subitamente, mais de um mês depois do pleito, nada garante que não seriam forjadas apenas para camuflar a fraude. O momento é de denunciar a permanência ilegítima de Maduro no poder e a repressão violenta que ele promove, e de garantir os meios para que o verdadeiro vencedor seja empossado. Mas nem Lula nem Amorim querem nada disso, afundando a reputação brasileira a cada dia com sua covardia movida a camaradagem ideológica.